domingo, 22 de dezembro de 2013
Por uma leitura garantista do Sistema de Controle Social
Por uma leitura garantista do Sistema de Controle
Social
1. Para introduzir o Garantismo Penal
1.1.
Embora tenha sido editada uma nova Constituição em 1988 há inescondível déficit hermenêutico nos campos do
Direito e Processo Penal no Brasil. A compreensão do Direito Penal e Processual
válido precisa de realinhamento
constitucional do sentido democrático, uma vez que tanto o Código Penal como o
Código de Processo Penal são documentos editados, na matriz, sob outra ordem
constitucional e ideológica, bem assim porque houve significativa modificação
do desenho político criminal contemporâneo[1].
Ademais, a Constituição acolheu os Direitos Humanos em patamar capaz de
dar eficácia imediata no campo de Controle
Social[2].
De sorte que há a necessidade de
adequação da própria noção do papel e função do Direito e do Processo Penal
diante da redemocratização do país. E, esse trabalho ainda está sendo
realizado, basicamente por força da (i)
baixa constitucionalidade, entendida como a ausência de cultura democrática no
Direito; (ii) necessária superação
do aparente dilema entre sistemas acusatório versus inquisitório; (iii)
herança equivocada de uma imaginária e nefasta “Teoria Geral do Processo”,
quando, na verdade, os fundamentos do processo penal democrático assumem viés
individual e não coletivo, a saber, não cabe “instrumentalidade processual
penal pro societate”[3];
(iv) difusão de modelo coletivo de
“Segurança Pública” que fomenta uma certa “Cultura do Medo”; (v) expansionismo do Direito Penal e
recrudescimento dos meios de controle social, a partir da lógica de diminuição
dos custos estatais; (vi)
prevalência de teorias totalitárias, como Direito Penal do Inimigo, atreladas
ao discurso da Lei e da Ordem[4].
1.2.
Nesse contexto, parece que se mostra necessário repensar as coordenadas simbólicas do campo do Direito e Processo
Penal adotada perspectiva crítica, mas sem se descolar da realidadae, ou seja,
da possibilidade de diálogo entre o saber produzido no campo da Universidade e
o que acontece no plano da prática forense, não na perspectiva unitária, mas
sim de um diálogo proveitoso, em que o ponto de partida seja a realização do
Estado Democrático de Direito[5].
Ainda assim, deve-se superar a noção idealizada de Jurisdição, Ação e Processo
(Cap. 4o), partindo-se da teoria
dos jogos (Cap. 1o).
2. Garantismo não é Religião: é limitação do Poder Estatal.
2.1.
Para o fim de entender a intervenção Estatal se recorrerá ao balizamento
apresentando pelo “Garantismo Penal” de Luigi Ferrajoli[6], sem
que ele se transforme em Religião[7],
pois é passível de muitas criticas[8].
Partindo de sólida Teoria do Direito[9], Ferrajoli apresenta quatro frentes para compreensão de sua proposta[10]:
(i) revisão da teoria da validade, diferenciando validade/material e vigência/formal
das normas jurídicas; (ii) distinção
entre as dimensões da Democracia entre formal e substancial, tendo os Direitos
Fundamentais como índice; (iii)
ratificação do lugar de garante do magistrado numa democracia mediante a
sujeição do juiz à lei, não mais pela mera legalidade, mas da estrita
legalidade, na qual a validade da norma (princípio e regra) devem guardar
pertinência material e formal com a Constituição da República; e (iv) revisão do papel critico da ciência jurídica não mais com a missão
exclusivamente descritiva, mas acrescentando contornos críticos e de projeção
ao futuro. Supera, assim, a noção meramente técnica, a saber, reconhece a
responsabilidade do ator jurídico e não de singelo aplicador da norma.
2.2.
Essa perspectiva teórica encontra esteio na Constituição da República dado que
baseada na dignidade da pessoa humana[11]
e nos Direitos Fundamentais[12],
os quais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena da
deslegitimação democrática da ação. Em face da supremacia Constitucional dos direitos indicados no corpo de
Constituições rígidas ou nela referidos (CR, art. 5º, § 2º), como a brasileira
de 1988, e do princípio da legalidade,
a que todos os poderes estão submetidos, emerge a necessidade de garantir esses
direitos a todos os sujeitos, principalmente os processados criminalmente, pela
peculiar situação que ocupam. Há
filiação à tradição de defesa dos Direitos Individuais em face do Estado, na
linha Iluminista, sem se descurar das contingências históricas[13].
2.3.
Nesse pensar, Ferrajoli aponta quatro
classes de direitos: (i) Direitos Humanos, os quais são os direitos
primários das pessoas e concernem indistintamente a todos os seres humanos; (ii)
Direitos públicos, que são os
direitos primários reconhecidos somente aos cidadãos; (iii) Direitos civis, os quais são
direitos secundários adstritos a todas as pessoas humanas capazes de agir, tais
como a liberdade de contratar, de negociar, de escolher e trocar de trabalho,
vinculados à autonomia privada, na matriz capitalista de Mercado; e (iv) Direitos políticos, os quais são
direitos secundários reservados exclusivamente aos cidadãos, no qual se baseia
a representação e a democracia política[14].
2.4.
A partir desta matriz e aprofundando a proposta, Ferrajoli propõe quatro teses em relação aos Direitos
Fundamentais: (i) A diferença de estrutura entre Direitos Fundamentais e
Direitos Patrimoniais, dado que os primeiros são vinculados a todos ou a
uma classe de sujeitos, sem exclusão dos demais, enquanto os direitos
patrimoniais, pela sua formulação, excluem todos os demais que não são
titulares. Por certo o acordo semântico de Direito
Subjetivo tem sido utilizado pelo Direito para ocultar as caraterísticas
antagônicas que subjazem a esta classificação aparentemente homogênea, mas que esconde
uma enorme heterogeneidade. Para comprovar tal assertiva, basta indicar:
direitos inclusivos/exclusivos, universais/singulares,
indisponíveis/disponíveis[15];
(ii) O respeito e implementação dos Direitos
Fundamentais representam interesses e expectativas de todos e formam,
assim, o parâmetro da igualdade jurídica, capaz de justificar a aferição da democracia material. Essa dimensão não é
outra coisa senão o conjunto de garantias asseguradas pelo Estado Democrático de Direito; (iii) A pretensão supranacional
de grande parte dos Direitos Fundamentais, uma vez que com as declarações
internacionais, além do direito interno, uma ordem externa impõe limites
externos aos poderes públicos; (iv) A relação entre direitos e garantias.
Os Direitos
Fundamentais se constituem em expectativas negativas ou positivas, as quais
correspondem obrigações de prestação ou proibição de lesão – garantias
primárias. A reparação ou sancionamento judicial constituem em garantias
secundárias, decorrentes da violação das garantias primárias. A inexistência de
garantias para efetivação dos direitos, em suma, leva a uma lacuna que torna os
direitos declarados inobservados[16].
2.5.
Esse retorno à Teoria Geral do Direito se mostra absolutamente importante desde
que acolhidas as quatro teses, eis que implica revisão da estrutura do Direito
Positivo, com reflexos inafastáveis no Direito Penal e Processual Penal.
Revisitada, portanto, a formulação dos Direitos Fundamentais, restam fixadas as
diferenças marcantes, consistente a primeira na circunstância de que os
Direitos Fundamentais são universais, enquanto os Direitos Patrimoniais são
singulares, excludentes dos demais. Aqui existe um titular determinado; nos
Direitos Fundamentais todos o são. Não se diferencia Direitos Fundamentais pela
qualidade ou quantidade, como se procede nos Direitos Patrimoniais. Os Direitos
Fundamentais são inclusivos e formam a base da igualdade jurídica, enquanto os
Direitos Patrimoniais são exclusivos (se eu sou proprietário da casa, o outro
não é). A segunda diferença é, talvez, a mais relevante. Os Direitos
Fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis,
intransigíveis e personalíssimos. Ao contrário, os Direitos Patrimoniais são
disponíveis por sua natureza, negociáveis e alienáveis. Estes se acumulam e
aqueles permanecem invariáveis. Os bens se adquirem, trocam-se e se vendem. As
liberdades não se trocam nem se acumulam. O fato de serem indisponíveis impede
que interesses políticos e/ou econômicos violem os Direitos Fundamentais; não
se pode vender ou trocar a liberdade. O ser humano os possui como tal, sem que
lhe seja acrescido. Resultado disso é que se não pode alienar a vida, a
liberdade pessoal ou o direito ao devido processo legal, por exemplo, mesmo que
se queira. Em processo penal não é admitida a confissão desprovida de outros
elementos, como era na Inquisição. A terceira diferença, consequência da
segunda, é que os Direitos Patrimoniais são disponíveis, podendo ser
modificados, extintos, por atos jurídicos. Os Direitos Fundamentais, ao revés,
são reconhecidos ex vi legis, por
normas gerais, normalmente de status constitucional. Em suma, enquanto os
Direitos Fundamentais são normas, os Direitos Patrimoniais são regulados por
normas. A quarta diferença consiste em que os Direitos Patrimoniais são
horizontais, os Direitos Fundamentais são verticais, em um duplo sentido.
Enquanto umas são civilistas, privadas, decorrentes de relações intersubjetivas
da esfera privada, as de Direitos Fundamentais são publicistas, do indivíduo
para com o Estado. Ademais, há que se considerar que os Direitos Patrimoniais
são disposições de não lesão entre os particulares; já no caso de Direitos
Fundamentais, sua violação repercute na invalidade de leis e decisões estatais[17].
2.6.
A Teoria Garantista representa ao mesmo tempo o resgate e a valorização da Constituição como documento constituinte da sociedade. Esse resgate
Constitucional decorre justamente da necessidade da existência de um núcleo
jurídico irredutível/fundamental capaz de estruturar a sociedade, fixando a
forma e a unidade política das tarefas estatais, os procedimentos para
resolução de conflitos emergentes, elencando os limites materiais do Estado, as
garantias e direitos fundamentais e, ainda, disciplinando o processo de
formação político-jurídico do Estado, aberto ao devir. A Constituição é uma disposição fundante da convivência e fonte da
legitimidade estatal, não sendo vazio[18],
mas uma coalizão de vontades com conteúdo, materializado pelos Direitos Fundamentais. A história do constitucionalismo é a
progressiva ampliação da esfera pública de direitos, de conquistas e rupturas.
Em outras palavras, a Constituição, nesta concepção garantista, deixa de ser meramente
normativa (formal), buscando resgatar o seu próprio conteúdo formador, indicativo
do modelo de sociedade que se pretende e de cujas linhas as práticas jurídicas
não podem se afastar, inclusive no âmbito do Direito e do Processo Penal.
Como primeira emanação normativa do Estado, aponta os limites e obrigações, sem
se perder de vista que é no processo de atribuição de sentido (concretização)
que se realiza.
2.7.
Assim é que a Constituição da República é a norma maior, sendo o fundamento de
validade material e formal do sistema. Advem disto o fato de que todos os
dispositivos e interpretações possíveis, inclusive o de transformar substantivo
em adjetivo – exclusivamente –, como
acontece com o art. 144, § 4o, da CR, por exemplo, devem perpassar
pelo seu controle formal e material, não podendo ser infringida ou modificada
ao talante dos governantes públicos, mesmo em nome da maioria – esfera do
indecidível –, dado que as Constituições rígidas, como a brasileira de 1988,
devem sofrer processo específico para reforma, ciente, ainda, da existência de cláusulas pétreas. Na prática, a
aplicação de qualquer norma jurídica precisa sofrer a preliminar oxigenação constitucional[19]
de viés garantista, para aferição da constitucionalidade material e formal da
norma jurídica. É somente assim que se dá a devida força normativa à Constituição[20].
3. Garantismo Penal e Direito Penal Mínimo
3.1.
No campo do Direito Penal o manejo do poder no Estado Democrático de Direito
deve se dar de maneira controlada, evitando-se a arbitrariedade dos eventuais
investidos no exercício do poder Estatal. Desta
forma, para que as sanções possam se legitimar democraticamente precisam
respeitar os Direitos Fundamentais, apoiando-se numa cultura igualitária e
sujeita à verificação de suas motivações, porque o poder estatal deve ser
limitado, a saber, somente pode fazer algo – por seus agentes – quando
expressamente autorizado.[21]
3.2. Assim é que no modelo ideal de Ferrajoli
são indicados onze princípios
necessários e sucessivos de legitimidade do sistema penal e, desta forma, da
sanção[22].
São eles: pena, delito, lei, necessidade,
ofensa, ação, culpabilidade, jurisdição, acusação, prova e defesa. A ausência de um deles torna a
resposta estatal, lida a partir do Garantismo, ilegítima, constituindo, cada um
(dos princípios), condição da
responsabilidade penal.
São,
assim, prescritivas de regras
processuais ideais ao modelo garantista sem que o seu preenchimento in totum obrigue uma sanção; mas o
contrário, pois somente com o preenchimento (de to)das implicações deônticas do
modelo é que o sistema está autorizado a emitir um juízo condenatório[23].
3.3.
A classificação divide-se em: a) garantias
penais: “delito”, “lei”, “necessidade”, “ofensa”, “ação” e
“culpabilidade”; e b) garantias
processuais: “jurisdição”, “acusação”, “prova” e “defesa”. Em sendo a
“pena" excluída do rol de garantias, por ser apenas uma possibilidade ao
cabo do processo, o modelo ideal full
é composto por dez axiomas, vertidos em latim:
A1
Nulla poena sine crimine/ A2 Nullum crimen sine lege/ A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate/ A4
Nulla necessitas sine injuria/ A5 Nulla
injuria sine actione/ A6 Nulla actio
sine culpa/ A7 Nulla culpa sine
judicio/ A8 Nullum judicium sine
accusatione/ A9 Nulla accusatio sine
probatione/ A10 Nulla probatio sine
defensione.
Esses princípios garantistas podem
ser vertidos em axiomas, respectivamente:
1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao
delito; 2) princípio da legalidade,
no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito
penal; 4) princípio da lesividade ou
da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade
ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionaridade, também no sentido lato e no sentido estrito; 8) princípio acusatório
ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da
falseabilidade.
3.4.
A par disto, cada sistema concreto poderá ser avaliado como de uma tendência ao ’direito penal mínimo’ ou ao ‘direito penal máximo’, conforme
satisfaça as condições antes indicadas, investindo-o de racionalidade e certeza,
na melhor tradição liberal. Garantismo e racionalidade encontram-se, pois,
imbricados na pretensão de construir a legitimidade do sistema punitivo,
mediante o estabelecimento de uma tecnologia apta e democraticamente sustentada
pelos Direitos Fundamentais. Essa
certeza/racionalidade buscada pelos Sistemas, divide-se, consoante cada modelo
– máximo ou mínimo –, na seguinte
opção segundo Ferrajoli: enquanto para o modelo máximo, a certeza deve impedir
que “nenhum culpado fique impune, à custa
da incerteza de que também algum inocente possa ser punido”[24];
no caso do direito penal mínimo, a atuação se dá no sentido de que “nenhum inocente seja punido à custa da
incerteza de que também algum culpado possa ficar impune.”[25]
Para o modelo penal mínimo, apesar da
previsão em lei do tipo penal, somente se comprovada processualmente a conduta
é que poderá se impor uma sanção, levando a sério a ‘presunção de inocência.’
De outra face, o modelo penal máximo golpeia
esta garantia, na ilusão de colher nas malhas do direito penal todos os
culpados[26].
3.5.
Acrescente-se que o Poder Legislativo encontra, ainda, a barreira material dos
Direitos Fundamentais em duplo sentido. Partindo-se do Direito Penal como
última ratio (princípios da
lesividade, necessidade e materialidade), a regulamentação de condutas deve se
ater à realização dos Princípios Constitucionais do Estado Democrático de
Direito, construindo-se, dessa forma, modelo
minimalista de atuação estatal que promova, de um lado, a realização destes
Princípios e, de outro, impeça suas
violações, como de fato ocorre com a explosão legislativa penal contemporânea,
quer pelas motivações de manutenção do status
quo, como pela ‘Esquerda Punitiva’[27]. Discute-se, no contexto, a necessidade de
teoria fundamentadora/justificadora da sanção[28].
Entretanto, a pena, longe de uma
fundamentação jurídica, possui somente uma justificação política, de ato de
força estatal. É afastada qualquer justificação, retributiva ou preventiva,
da medida, conforme explicita o Garantismo Jurídico, na pena tupiniquim de
Carvalho[29].
Relegada a discussão abolicionista
(Foucault, Mathiesen, Christie e Hulsman)[30],
assume-se a postura garantista-jurídico-penal, informada pelo Princípio da Secularização e da Laicização[31]
do Estado, da Teoria Agnóstica da
Pena. Essa teoria, percebendo a imposição como ato de poder, tal qual a
guerra[32],
imputa ao direito penal a finalidade de redução das violências praticadas pelo
Estado[33].
Existiria, portanto, uma dupla funcionalidade da sanção. Primeiro impedindo a
vingança privada (abusiva e espúria), eis que quem é juiz em causa própria se
vinga desmesuradamente – baluarte Iluminista e constante no pensamento do contratualista
Locke[34].
Em segundo lugar restringindo a manifestação do poder político estatal (pena)
se dê sem limites, violando os Direitos Fundamentais, nos exatos limites da
estrita legalidade. Nada, absolutamente nada de retribuição ou prevenção (geral
ou especial), consoante afirma Ferrajoli: “O
paradigma do direito penal mínimo assume como única justificação do direito
penal o seu papel de lei do mais fraco em contrapartida à lei do mais forte,
que vigoraria na sua ausência; portanto, não genericamente a defesa social, mas
sim a defesa do mais fraco, que no momento do delito é a parte ofendida, no
momento do processo é o acusado e, por fim, no momento da execução, é o réu.”[35]
3.6.
Para o atendimento desta pretensão necessária a releitura efetuada do ‘Princípio
da Legalidade’ não mais somente verificável pela edição formal da norma
jurídica (mera legalidade, vigência), mas principalmente pelo preenchimento dos
dez axiomas garantistas (estrita legalidade, validade). O ‘Princípio da
Legalidade’ precisa, então, ser relido, não bastando mais a simples previsão
legal do tipo penal, dado que essa legalidade formal é fonte, em alguns casos,
de um direito penal substancialista. Assim é que o Direito Penal secularizado precisa indicar tipos
penais regulamentares, isto é, que se vinculem ao mundo da vida, impedindo,
assim, que o processo sirva de mero simulacro. Dito de outra forma, as
adjetivações ou perseguições tópicas, como no caso de ‘bruxas’, ‘subversivos’,
‘hereges’, ‘inimigos do povo’[36]
(ainda presentes formalmente, por exemplo, na Lei de Contravenções Penais[37]),
dentre outros, estão expungidas do Direito Penal Garantista por não se
vincularem a condutas possíveis, mas a elementos constitutivos do sujeito[38].
É preciso que o tipo penal prescreva uma proibição, modalidade deôntica, sob
pena de deslegitimação epistemológica
do próprio tipo penal. Esses elementos decorrem da secularização do Estado (e do Direito Penal) contemporâneo, o qual
deixa de lado os aspectos ditos ‘intrínsecos’ da conduta, adjetivada de imoral, anormal ou abjeta, para
se resumir, no Estado Democrático de Direito, à expressa previsão legal do tipo
penal, ou seja: “é aquele formalmente
indicado pela lei como pressuposto necessário para a aplicação de uma pena,
segundo a clássica fórmula nulla poena et nullum crimen sine lege.”[39]
Agrega-se ao primeiro a impossibilidade de se analisar o interior
(subjetividade do agente) – sempre arbitrária – nem o julgar por seus
antecedentes ou conduta social, como fazia o ‘direito penal do autor’,
restringindo-se democraticamente o objeto para “figuras empíricas e objetivas de comportamento, segundo a outra máxima
clássica: nulla poena sine crimine et sine culpa.”[40]
No tipo penal do autor inexiste conduta ‘regulativa’ a ser comprovada, senão
situações ‘constitutivas’ da personalidade do acusado, independentemente da
existência de ‘ação’ e ‘ofensividade’, sendo, pois, substancialista[41].
3.7.
Partindo-se do Direito Penal como última ratio,
ou seja, como o último recurso democrático diante da vergonhosa história das
penas[42],
brevemente indicadas como de morte, privativa de liberdade e patrimonial, excluída a primeira pois
desprovida de qualquer fim ou respeito ao acusado, as demais se constituem em
técnicas de privação de bens, em tese, proporcional à gravidade da conduta em
relação ao bem jurídico tutelado, segundo critérios estabelecidos pelo Poder
Legislativo, na perspectiva de conferir caráter abstrato e igualitário ao
Direito Penal. Ferrajoli sublinha: “A
história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante para a humanidade
do que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e talvez mais
numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas
pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e
às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre
programada, consciente, organizada por muitos contra um. Frente à artificial
função de defesa social, não é arriscado afirmar que o conjunto das penas
cominadas na história tem produzido ao gênero humano um custo de sangue, de
vidas e de padecimentos incomparavelmente superior ao produzido pela soma de
todos os delitos.”[43] Na sua proposta, Ferrajoli aponta para
a construção de um ‘direito penal mínimo’, entregando para outros mecanismos de
resolução de conflito – leia-se extra-penais – cuja necessidade de intervenção,
via aparelho repressor penal não esteja devidamente justificada. Este critério utilitarista reformado e humanitário procura garantir, também,
que o sujeito não seja submetido às imposições totalitárias de índole
moralizante, uma vez que o discurso da reeducação é anti-democrático[44].
Assim é que somente nos casos em que os ‘efeitos lesivos’ das condutas
praticadas possam justificar os custos das penas e proibições, as sanções
estariam autorizadas.
3.8.
Consequência direta desse princípio é a redução do número de tipos penais, a
diminuição do tempo das sanções, as quais por serem longas demais, excluem o
sujeito da sociedade e são desumanas, mormente nas condições em que são
executadas, bem como a deslegitimidade das sanções pecuniárias e dos ‘crimes de
bagatela’, que não justificam nem mesmo a instauração do processo[45],
além dos de cunho moralizante. Por isto que: “Se o direito penal responde somente ao objetivo de tutelar os cidadãos
e de minimizar a violência, as únicas proibições penais justificadas por sua
‘absoluta necessidade’ são, por sua vez, as proibições mínimas necessárias,
isto é, as estabelecidas para impedir condutas lesivas que, acrescentadas à
reação informal que comportam, suporiam uma maior violência e uma mais grave
lesão de direitos do que as geradas institucionalmente pelo direito penal.”[46]
A aplicação de uma sanção exige a lesividade
mensurável do resultado da ação, lida a partir dos seus efeitos. Essa é a
carga do princípio da ‘lesividade’. Isto porque as palavras ‘dano’, ‘lesão’ e
‘bem jurídico’ demandam uma atribuição de sentido, um preenchimento semântico,
vinculado aos fundamentos do direito de punir, ou seja, “com os benefícios que com ela se pretendem alcançar.”[47]
Resumindo a discussão sobre os equívocos da evolução do conceito de ‘bem
jurídico’, o qual deixou de ter como referencial o ponto de vista externo, na
direção contrária do pensamento ‘Iluminista’, passando a tutelar situações de
ordem interna e autoritárias[48].
3.9.
Com efeito, resta arredada a possibilidade da fixação, pelo Estado, de modelo
único de comportamente interno, de pensamento, enfim, totalitário, abrindo-se
espaço para a construção da alteridade,
dos direitos do cidadão a partir do ‘princípio
da tolerância’, possibilitando o
direito de pensar – liberdade de consciência – conforme as próprias convicções
morais e éticas[49],
e tendo como parâmetro de atuação penal somente os efeitos da ação e jamais as
potencialidades hipotéticas. Resta tutelada a liberdade da construção da
singularidade da personalidade (ser perverso, mau, imoral, perigoso), até
porque essas ilações jamais poderiam ser objeto de um processo garantista,
devido à impossibilidade de reconstrução da conduta, ademais, inexistente. Não
é sem motivo que Ferrajoli anota: “Fica,
pois, claro que o princípio da materialidade da ação é o coração do garantismo
penal, que dá valor político e consistência lógica e jurídica a grande parte
das demais garantias.”[50] Embora seja fundamental a existência material da ação, desde o século XIX
duas teorias solaparam esta garantia. A primeira fomentadora de um ‘delinqüente
natural’ e de uma ‘Defesa Social’, construída sobre a nefasta e insustentável
noção de ‘periculosidade’, a qual é aquilatada (!?) por critérios
pseudo-científicos e absolutamente insustentáveis epistemológica e
democraticamente, cujos herdeiros saudosistas ainda frequentam, diariamente, os
foros. De outro lado, o ‘tipo de autor’, no qual a ação é reduzida ao analisar
a personalidade do agente, livre de qualquer ação, com claros propósitos
ideológicos[51].
3.10.
Atrelado à concepção de racionalidade
e consciência, próprio da Modernidade, o ‘princípio da
culpabilidade’ é entendido como a decisão preliminar e consciente acerca da vontade de agir, de intencionalmente
compreender e proceder – elemento subjetivo – em face de uma regra regulativa.
Essa decisão consciente contrapõe-se aos modelos que aceitam a responsabilidade
penal sem culpa ou intenção: responsabilidade objetiva. Aponta como fundamentos
políticos externos a ação material, seu caráter intimidatório, a possibilidade
de previsão do agir social conforme as regras e as únicas (condutas) que podem
ser logicamente proibidas. Suas modalidades são o dolo e a culpa, com as
diversas classificações doutrinárias possíveis. O importante é que deva ser
imputável a causa à ação decorrente de ato de vontade[52],
dado que há uma necessária diferença entre ‘culpabilidade’ e
‘responsabilidade’, dado que esta é a sujeição à sanção como conseqüência da
conduta. O dilema metafísico do ‘determinismo’ e do ‘livre-arbítrio’ resta
superado, contudo, pelo Sistema Garantista (SG). Para os ‘deterministas’ a
pessoa não poderia ter agido de outra
forma, já que sua ação está condicionada a outros elementos que independem
de sua vontade; o agente é objetificado. De outra face, os partidários do
‘livre-arbítrio’ entendem que se não há um elemento externo capaz de abalar a
capacidade psíquica do agente, este poderia
ter agido de forma diferente. Ambas concepções desconsideram o caráter
material da ação, abrindo ensejo para práticas antigarantistas. Ferrajoli
sublinha que “a consequência é que no
primeiro caso temos um resultado sem culpa e, no segundo, uma culpa sem
resultado, destituída da mediação, e, em qualquer dos casos, da ação culpável.”[53]
Corolário do ‘determinismo’ é a objetificação do sujeito e a preparação do
Estado na ‘Defesa Social’ das personalidades desviadas e a construção do
conceito de ‘periculosidade’, o qual vem de encontro à construção histórica da
culpabilidade. Já o ‘livre-arbítrio’ deixa espaço para julgamento subjetivo do
agente, como se fazia no ‘direito penal do autor’, isto é, da culpa do homem e
não de sua ação[54].
3.11.
Para o ‘princípio da culpabilidade’ propugnado por Ferrajoli, são necessários
dois requisitos: a) que o proibido decorra de uma comissão/omissão verificável
numa ação regulativa e não da subjetividade do agente; e b) que ex ante haja possibilidade desta
comissão/omissão. Esta opção deixa de ser vista desde uma percepção ontológica,
passando a ser deontológica de ‘eleição’ entre possibilidades de ‘ação’ e não
de ‘ser’[55].
Arredada, pois, a ideia de se imiscuir na personalidade do agente, perdem
sentido as construções sobre a ‘capacidade criminal’, ‘reincidência’,
‘tendência para delinqüir’ e outras preciosidades totalitárias e
anti-democráticas construídas com base nas concepções criticadas e
marcantemente substancialistas e discricionárias, como se verifica nos crimes
de associação, por exemplo.
3.12.
Nesse contexto garantista é que se pode analisar o panorama do estado da arte
no Brasil, tarefa, todavia, para se continuar no cotidiano das violações
diárias, palco dos dilemas de infetividade constitucional, desvelando, por um
lado, a necessidade de teoria sustentadora da praxis e, de outro, que a noção
de processo precisa ser lida pela teoria
dos jogos.
[1]
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis
processuais penais. Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2005; PRADO, Geraldo. Em torno
da jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[2]
Embora difundida a existência da máxima “in dubio pro societate” no recebimento
da denúncia e na decisão de pronûncia, inexiste disposição legal para tal
fundamento. É prática autoritária deprovida de sustentação democrática.
[3]
MORAIS DA ROSA, Alexandre. SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um processo
penal democrático: Crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 63-97.
[4]
Consultar: FRANÇA, Leandro Ayres. Inimigo ou a inconveniência de existiir. Rio
de Janeiro; Lumen Juris, 2012.
[5]
PEDRA, Adriano Sant’ana. A Constituição viva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2012; OMMATI,José EMÍLIO Medauar; Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2013.
[6]
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 2002., p. 29-680.
[7]
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: A conformidade Constitucional das Leis
Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. XXI: “O garantismo
não é uma religião e seus defensores não são profetas ou pregadores utópicos.
Trata-se de um sistema incompleto e nem sempre harmônico, mas sua principal
virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade, baseada em
procedimentos que têm em vista o objetivo de conter os abusos do poder.”
[8]
PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do Garantismo. Uma proposta
hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012; GIANFORMAGGIO, Letizia (org.) Le ragioni del garantismo: discutendo com
Luigi Ferrajoli. Torino: G. Giappichelli Editore, 1993; QUEIROZ, Paulo. A
justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas
considerações críticas. In: SANTOS, Rogério Dultra dos. Introdução crítica ao
estudo do sistema penal. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 117-127;
CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro. Garantismo: estudios sobre el pensamiento
jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid; Trotta, 2005; FERRAJOLI, Luigi; STRECK,
Lenio Luiz. (orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012.
[9]
FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Vols. I e II. Bari: Laterza, 2007. Embora
essa obra seja posterior ao Direito e Razão, reitera as posições de garantia do
processo em face do sujeito. No mesmo sentido; FERRAJOLI, Luigi. Garantismo:
uma disusi´n sobre derecho y democracia. Madrid: Trotta, 2006.
[10]
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías..., p. 20. Ressalta-se que não se deve
confundir essa introdução com os três significados de “garantismo” indicados no
capítulo 13 de FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 683-686.
[11]
SARLET, Ingo. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006.
[12]
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías..., p. 23-4: “Los derechos fundamentales
se configuran como otros tantos vínculos sustanciales impuestos a la democracia
política: vínculos negativos, generados por los derechos de libertad que
ninguna mayoria puede violar; vínculos positivos, generados por los derechos
sociales que ninguna mayoría puede dejar de satisfacer.”
[13]
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem
garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 161.
[14]
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid:
Trotta, 2001, p. 22-23.
[15]
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales..., p. 25.
[16]
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales..., p. 24-26.
[17]
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales..., p. 30-34.
[18]
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998, p. 95.
[19]
MORAIS DA ROSA, Alexandre. O que é garantismo jurídico. Florianópolis: Habitus,
2003, p. 38.
[20]
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991, p. 25.
[21]
BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatorio. Campomanes: Buenos
Aires, 2000, p. 70: “El poder es sumamente intenso y, por lo tanto, debe ser
cuidadosamente limitado. Si
la sociedad ha tomado la decisión de dotar a algunos funcionarios (los jueces)
del poder de encerrar a otros seres humanos en ‘jaulas’ (las cárceles) esse
poder no puede quedar librado a la arbitrariedad y la falta de control.”.
[22]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 88: “Aqui bastará precisar que por
‘pena’ se deve entender qualquer medida aflitiva imposta juridicamente por meio
do processo penal; por ‘delito’, qualquer fenômeno legalmente previsto como
pressuposto de uma pena; por ‘lei’, qualquer norma emanada do legislador; por
‘necessidade’, a função de tutela de bens fundamentais que justifica as
proibições e as penas; por ‘ofensa’, a lesão de um ou de vários de tais bens;
por ‘ação’, um comportamento humano exterior, material ou empiricamente
manifestável, tanto comissivo quanto omissivo; por ‘culpabilidade’, o nexo de
imputação de um delito a seu autor, consistente na consciência e vontade deste
para com aquele; por ‘juridição’, o procedimento mediante o qual se verifica ou
refuta a hipótese da comissão de um delito; por ‘acusação’, a formulação de tal
hipótese por parte de um órgão separado dos julgadores; por ‘prova’, a
verificação do fato tomado como hipótese pela acusação e qualificado como
delito pela lei; por ‘defesa’, o exercício do direito de contraditar e refutar
a acusação.”
[23]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 74: “Cada uma das implicações
deônticas – ou princípios – de que se compõe todo modelo de direito penal
enuncia, portanto, uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica
para a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da pena. Tenha-se
em conta de que aqui não se trata de uma condição suficiente, na presença da
qual esteja permitido ou obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária,
na ausência da qual não está permitido ou está proibido punir.”
[24]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 84.
[25]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 85.
[26]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 441.
[27]
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos, Rio de
Janeiro, n. 1, p. 79-92, 1996; CHIES, Luiz Antônio Bogo. É possível se ter o
Abolicionismo como meta, admitindo-se o Garantismo como estratégia? In:
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Orgs.). Diálogos Sobre a Justiça
Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 161-219.
[28]
Evidentemente que muitas críticas podem ser elaboradas de diversos lugares
teóricos e práticos, desde o abolicionismo até o Movimento da Lei e Ordem, para
ficar somente em extremos, ambos na defesa de suas ideias, justificando-se a
consulta de trabalhos críticos sobre o tema, alguns referidos no corpo do
trabalho.
[29]
CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena: O modelo garantista de limitação
do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de. Crítica à Execução Penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 3-43.
[30]
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da
violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997;
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:
introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
[31]
CATROGA, Fernando. Secularização, Laicidade e Religião Civil. Coimbra:
Almedina, 2006; MARRAMAO, Giacomo. Poder e Secularização: as categorias do
tempo. Trad. Guilherme Alberto Gomes de Andrade. São Paulo: UNESP, 1995.
[32]
CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena..., p. 36: “Entendida como fenômeno
da política, a pena, assim como a guerra, não encontra sustentação no direito,
pelo contrário, simboliza a própria negação do jurídico. Ambas (pena e guerra)
se constituem através da potencialização da violência e da imposição
incontrolada de dor e sofrimento.”
[33]
CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena..., p. 32-33: “Ao representar o
modelo minimalista de redução das penas, [o garantismo] rompe com a tradição da
doutrina penal em direcionar todo o escopo da sanção à prevenção de novos
delitos, tanto pela via individual (prevenção especial positiva) como pela
coletiva (prevenção geral negativa). Ao contrário dos modelos defensistas que
demonizam o autor do ilícito penal, utilizando a pena como forma de tutela
social, o modelo garantista recupera a funcionalidade da pena na restrição e
imposição de limites ao arbítrio sancionatório judicial e administrativo.”
[34]
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias..., p. 42: “O raciocínio de Locke se
desenvolve desta forma em quatro assertivas: as leis naturais podem ser
violadas; as violações das leis naturais devem ser punidas e os danos
reparados; o poder de punir e de exigir reparação cabe, no estado de natureza,
à própria pessoa vitimada; quem é juiz em causa própria habitualmente não é
imparcial e tende a vingar-se em vez de punir.”
[35]
FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrática. Trad. Carlos Arthur
Hawker Costa. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 12, p. 31-39, 2002,
p. 32.
[36]
DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e Seus Inimigos: a repressão política na história
do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
[37]
COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000, p. 185-186.
[38]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 31: “Com caráter ‘constitutivo’ e não
‘regulamentar’ daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis
ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os
subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso
ordenamento, que perseguem os ‘desocupados’ e os ‘vagabundos’, os ‘propensos a
delinqüir’, os ‘dedicados a tráficos ilícitos’, os ‘socialmente perigosos’ e
outros semelhantes.”
[39]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 30.
[40]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 30.
[41]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 80. “Substancialismo e subjetivismo,
além disso, alcançam as formas mais perversas no esquema penal do chamado tipo
de autor, onde a hipótese normativa de desvio é simultaneamente ‘sem ação’ e
‘sem fato ofensivo’.”
[42]
FOUCAULT, Michael. Resumo dos cursos do Collège de France. Trad. Andrea Daher.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 11-44; FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir.
Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2000. Com Foucault pode-se também
ter uma dimensão das atrocidades praticadas em nome da aplicação de sanções,
basicamente de quatro formas: a) exílio/banimento; b) compensação/conversão em
pecúnia; c) marca física ou exposição vexatória; e d) enclausuramento.
[43]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 310.
[44]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 319: “Que não reeduque, mas também que
não deseduque, que não tenha uma função corretiva, mas tampouco uma função
corruptora; que não pretenda fazer o réu melhor, mas que tampouco o torne pior.
Mas para tal fim não há necessidade de atividades específicas diferenciadas e
personalizadas.”
[45]
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002; BUENO DE CARVALHO, Amilton. Garantismo Penal
aplicado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA,
Nilo. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 225-230;
BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002; PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição,
criminalização e Direito Penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003..
[46]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 373.
[47]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 374.
[48]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 376
[49]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 385. “Observado em sentido negativo,
como limite à intervenção penal do Estado, este princípio marca o nascimento da
moderna figura do cidadão, como sujeito suscetível de vínculos em seu atuar
visível, mas imune, em seu ser, a limites e controles; e equivale, em razão
disso, à tutela da sua liberdade interior como pressuposto não somente da sua
vida moral mas, também, da sua liberdade exterior para realizar tudo o que não
esteja proibido. Observado em sentido positivo, traduz-se no respeito à pessoa
humana enquanto tal e na tutela da sua identidade, inclusive desviada, ao
abrigo de práticas constritivas, inquisitoriais ou corretivas dirigidas a
violentá-la ou, o que é pior, a transformá-la; e equivale, por isso, à
legitimidade da dissidência e, inclusive, da hostilidade diante do Estado; à
tolerância para com o diferente, ao qual se reconhece sua dignidade pessoal; à
igualdade dos cidadãos, diferenciáveis apenas por seus atos, não por suas
ideias, por suas opiniões ou por sua específica diversidade pessoal.”
[50]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 387.
[51]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 389: “Em ambos os casos, as vias do
substancialismo coincidem, como sempre, com as do subjetivismo: por um lado,
deliquente nato e tipo criminológico; por outro, personalidade inimiga ou desleal
e tipo normativo do autor. A crise da ação como garantia marca uma
desvalorização da pessoa humana, degradada à categoria animal, em um caso, e
sublimada e negada, no outro, por meio de sua identificação com o Estado.
Trata-se da restauração de um substancialismo laico, que substitui o
substancialismo jusnaturalista pré-moderno, mas que volta a descobrir o malum
in se na pessoa desviada: e isso não como oferenda à velha moral religiosa e
ultraterrena, senão às leis da evolução e seleção do organismo social ou, pior
ainda, à ética ou à mística do Estado.”.
[52]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 392: “Sem adentrarmos na discussão das
inumeráveis opiniões e construções sobre a matéria, parece-me que esta noção –
que corresponde à alemã de Schuld e à anglo-saxã de mens rea – pode ser decomposta em três elementos, que constituem
outras tantas condições subjetivas de responsabilidade no modelo penal
garantista: a) a personalidade (ou ‘suitá’ da ação), que designa a
susceptibilidade de adstrição material do delito à pessoa do seu autor, isto é,
a relação de causalidade que vincula reciprocamente decisão do réu, ação e
resultado do delito; b) a imputabilidade ou capacidade penal, que designa uma
condição psicofísica do réu, consistente em sua capacidade, em abstrato, de
entender e de querer; c) a intencionalidade ou culpabilidade em sentido
estrito, que designa a consciência e a vontade do delito concreto e que, por
sua vez, pode assumir a forma de dolo ou de culpa, segundo a intenção esteja
referida à ação e ao resultado ou somente à ação e não ao resultado, não
querido nem previsto, embora previsível.”
[53]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 395.
[54]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 397: “A força sedutora dessa duas
orientações provém do fato de que seus efeitos antigarantistas – ademais de ser
reflexo, como todos os esquemas substancialistas, do obscuro lugar-comum do
delinqüente como ‘diferente’ (‘doente’ ou ‘inimigo’), ao qual se tem de
enfrentar enquanto tal – parecem estritamente coerentes com as duas hipóteses
filosóficas que lhes dão impulso e que se beneficiam, por sua vez, do
aparentemente óbvio: o determinismo e a não liberdade de querer que fazem com
que sintamos injusta a culpabilização subjetiva do agente por ações
independentes de sua vontade e que sugerem seu tratamento como se fosse um
doente ou um animal perigoso; o livre-arbítrio não condicionado, que torna
paralelamente injusto limitar o objeto da pena às manifestações contingentes e
casuais do autor, em lugar de estendê-lo à sua personalidade perversa,
investigando-a e castigando-a por sua forma geral de ser.”
[55]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 399-400: O livre-arbítrio (...), como
pressuposto normativo da culpabilidade, corresponde, em definitivo, ao atuar –
ou, caso se prefira, ao querer –, mas não ao ser do agente. Isso não impede,
obviamente, que se use a palavra ‘culpável’ para referir-se a uma pessoa, ainda
que se não o faça para designar uma ‘propriedade’ (Tício é, em si, culpável),
senão somente sua relação com uma conduta (Tício é culpável de uma ação).
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