sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Advertência de Miranda - Processo Penal

AS LEIS E AS PALAVRAS

Direito de permanecer calado gera confusão nos EUA

Prof. Richard Rogers - Spacca - Spacca
O psicólogo forense Richard Rogers é considerado o maior especialista dos Estados Unidos na intrincada complexidade linguística e cognitiva por trás do que a cultura criminalista norte-americana chama de “Advertências Miranda” (Miranda Warnings, no original em inglês). São as famigeradas frases celebrizadas por filmes policiais e séries televisivas dos EUA: “Você tem o direito de permanecer calado. Tudo o que disser poderá e será usado contra você no tribunal. Tem ainda o direito de falar com um advogado...”.
A despeito da aparente superficialidade do clichê, os Miranda, como são conhecidos nos EUA, correspondem à declaração de direitos que a autoridade policial é obrigada a dizer ao indivíduo que é rendido em custódia, antes mesmo de realizar qualquer pergunta relativa a sua autoria ou participação em uma atividade ilícita.
As origens do enunciado são constitucionais. A Quinta e Sexta Emendas da Constituição dos Estados Unidos garantem, respectivamente, ao cidadão detido pela Polícia o direito de permanecer em silêncio e de dispor de representação legal para defender-se.
As Advertências Miranda foram estabelecidas pela Suprema Corte do país no ano de 1966, na decisão do conturbado caso Miranda contra o Estado do Arizona. Desde então, toda e qualquer declaração autoincriminatória feita pelo réu não constitui elemento ou evidência para julgamento se este não foi informado previamente, pelos policiais que o renderam, do direito de se recusar a prestar informações e do direito à assistência jurídica. Para renunciá-lo, o suspeito tem que fazer uma declaração “consciente, inteligente e voluntária” de que abre mão da garantia constitucional.
Há mais de 40 anos, Ernesto Arturo Miranda, preso sob a acusação de sequestro e estupro, foi condenado em primeira instância por um tribunal que tomou como evidência apenas a confissão do suspeito. Em 1966, ao examinar o recurso da ação que questionava a detenção do réu, a Suprema Corte decidiu por revogar sua prisão por entender que a Quinta e a Sexta Emendas foram desconsideradas, e os direitos constitucionais de Ernesto Miranda negligenciados. O réu seria condenado em um novo julgamento em que depoimentos de testemunhas e outras provas foram apresentadas.
Desde o célebre caso, a Suprema Corte estabeleceu a obrigatoriedade de apresentar-se o enunciado a quem é detido. As Advertências Miranda ou os Direitos Miranda, como são conhecidos, tornaram-se uma referência para a população e migraram para o imaginário popular, especialmente para o cinema. Na língua inglesa, existe até mesmo o verbo “Mirandize” (em maiúsculo mesmo), que descreve a leitura ou declaração oral da garantia.
Na época, a Suprema Corte estabeleceu que tipo de informações deveriam ser comunicadas ao suspeito, criando, quase que informalmente, uma espécie de guia para as autoridades policiais. Contudo, os juízes não determinaram um texto padrão, deixando de especificar que frases ou palavras deveriam ser usadas. Essa lacuna, aparentemente não muito importante, abriu precedentes para inúmeras discrepâncias e situações quase que surreais envolvendo a declaração do direito de não se autoincriminar: desde a prisão de inocentes até intermináveis impasses em tribunais. Esses casos tem desafiado cortes em todo o país e mesmo o mais alto tribunal de Justiça dos Estados Unidos.
O fenômeno ganhou a atenção do Ph.D. Richard Rogers, que, depois de anos de pesquisa, tornou-se a maior autoridade no país sobre as implicações que envolvem o uso das frases. Rogers é professor da Universidade do Norte do Texas, já tendo ocupado importantes cargos na Divisão de Psiquiatria e Justiça da Universidade Rush, Chicago, e na Divisão de Psiquiatria Forense da Universidade de Toronto, no Canadá. O estudioso está à frente de diversas pesquisas que envolvem não só o contexto cognitivo e social das Advertências Miranda, mas também análises sobre a competência e capacidade psicológicas de réus em tribunais e avaliações de insanidade de suspeitos. As avaliações feitas por Rogers, especialmente nos casos de insanidade, são bastante requisitadas em cortes por todo os EUA, inclusive em julgamentos importantes.
O professor é também responsável por ter desenvolvido testes que avaliam a simulação de insanidade, sintomas e doenças por réus. Testes que se tornaram referência para o campo da psicologia forense nos EUA. Rogers foi agraciado ainda com premiações de âmbito nacional como oManfred S. Guttmacher Award, da Associação Americana de Psiquiatria; o Distinguished Contributions to Forensic Psychology Awards, da Academia Americana de Psicólogos Forenses, e oAmicus Award, pela Academia Americana de Psiquiatria e Justiça.
Autor de mais de 170 artigos na área e de seis obras sobre a prática da psicologia forense, Rogers é atualmente investigador-chefe da Fundação Nacional de Ciência, onde coordena estudos que avaliam o uso das Advertências Miranda. Algumas de suas pesquisas têm ajudado representantes do sistema de Justiça dos Estados Unidos a compreender falhas decorrentes do uso indiscriminado desses enunciados.
Em um artigo publicado no verão de 2008 na revista especializada Criminal Justice, o professor avaliava: “Apegar-se a mitos científica e juridicamente infundados sobre o uso dos “Miranda” continuará repercutindo em consequências inaceitáveis como a detenção de inocentes e falhas em acusar e prender os verdadeiros criminosos. Emprestar clareza e empregar simplicidade às Advertências Miranda irão nos ajudar a percorrer o longo caminho para corrigir os erros que têm frustrado os profissionais de Direito e despertado a revolta da opinião pública”.
O professor Richard Rogers conversou com a revista Consultor Jurídico sobre os problemas enfrentados pelo sistema de Justiça Criminal dos EUA, decorrentes do uso equivocado das Advertências Miranda.
Leia a entrevista:
ConJur — Como e quando surgiu seu interesse em estudar as Advertências Miranda?
Richard Rogers — É interessante, mas eu, como a maioria dos americanos, acreditava que existia apenas um tipo de Advertência Miranda e que havia boas pesquisas em curso sobre o tema. Por isso, esse assunto nunca havia me interessado de fato. Eu trabalhava em um artigo quando me deparei com os primeiros estudos realizados sobre os Miranda, como os chamamos aqui nos EUA. Descobri que havia ao menos 50 tipos diferentes de advertências, porque cada um dos 50 estados corresponde a uma jurisdição diferente. Percebi que, na verdade, não sabia nada sobre aquilo e que, provavelmente, a maioria de nós sequer concebe o quão complexa a aplicação e a decorrente compreensão desses comunicados policiais podem ser. O problema é que, quando a Suprema Corte estabeleceu a exigência para que a Polícia usasse as Advertências Miranda ao efetuar prisões, eles não determinaram o que seu conteúdo denotaria. Eles nunca especificaram que linguagem ou frases as advertências deveriam ter, de modo que isso deixou uma lacuna para que cada jurisdição, tanto em nível de condado, estado e federal, inventasse as frases a sua maneira. Eles pretenderam ser flexíveis, mas, dessa forma, deixaram a porta aberta para que se criassem centenas de tipos diferentes de Advertências Miranda.
ConJur — No Brasil, conhecemos essas frases de filmes policiais e séries de TV, mas temos poucas informações a seu respeito. Sabemos que o direito de não se autoincriminar é constitucional, mas a maioria de nós desconhece outros aspectos que envolvem o uso das frases. Por que avaliar como elas são usadas é tão importante a ponto de serem objetos de pesquisa? Qual o problema de não existir um texto padrão e qual o impacto disso para o funcionamento do sistema de Justiça criminal dos EUA?
Richard Rogers — O propósito das Advertências Miranda é garantir o direito assegurado sobretudo pela Quinta Emenda de preservar o cidadão de autoincriminar-se. A Suprema Corte, em 1966, questionou a prisão de Ernesto Miranda com base em que o suspeito desconhecia essa prerrogativa e estabeleceu a exigência de se comunicar os cidadãos sobre isso. Pois bem, para você abrir mão de um direito, de uma garantia constitucional, o mínimo que pode se esperar é que você tome essa decisão baseado em uma informação correta, partindo do pleno conhecimento dos seus direitos. Esta é a sutileza. O Estado tem de informá-lo para que você possa tomar a decisão, e não simplesmente presumir que você conheça os seus direitos. E se você é um suspeito em custódia da Polícia, tem que saber do direito de se aconselhar com um advogado, isso precisa ser informado corretamente. O erro é assumir que todos sabem disso e que qualquer um entende o que isso implica independente de como é comunicado. Descobrimos que esse equívoco é muito maior do que se imagina e gera consequências que comprometem o funcionamento da Justiça.
ConJur — O senhor poderia dar um exemplo de como essa variabilidade linguística afeta a compreensão que o suspeito detido tem do que a autoridade policial está dizendo?
Richard Rogers — Em dois estudos que realizamos em nível nacional, reunimos 888 diferentes formas de Advertências Miranda coletadas em inúmeros estados. Algumas apresentavam variações muito sutis, apenas uma palavra ou duas diferentes. Outras apresentavam uma linguagem dramaticamente diferente. A principal discrepância percebida foi no nível de instrução necessário para se compreender algumas delas. O nível de entendimento das advertências escritas variava entre a terceira série do ensino elementar até a pós-graduação. Era impossível que alguém que tivesse apenas concluído o ensino médio pudesse compreender as mais sofisticadas. Algumas tinham apenas 50 palavras e outras mais de 500. Descobrimos que, para suspeitos menores de idade, as advertências eram ainda maiores, com mais de 700 palavras. Você pode imaginar um menor de idade detido pela Polícia tendo que compreender um rosário de explicações com mais de duas páginas de extensão?
ConJur — Então, as Advertências Miranda para menores de idade são mais extensas?
Richard Rogers — Em alguns casos, sim. O raciocínio é que elas precisam ser melhor explicadas, com mais detalhes já que estão voltadas para jovens. E isto é correto. Só que apenas aumentaram o grau de complexidade. Estamos trabalhando agora em outra pesquisa e apuramos que as Advertências Miranda juvenis são, por vezes, escritas em uma linguagem mais complexa e tendem a ser mais longas. De fato, algumas delas são mais difíceis de entender.
ConJur — O ponto é que as Advertências Miranda, da forma como são apresentadas, não são claras o suficiente?
Richard Rogers — Não é só isso. Em relação à recusa da garantia constitucional de não se autoincriminar, é exigido que ela seja declarada de forma racional e consciente, mas o suspeito, muitas vezes, sequer sabe que permanecer em silêncio não irá prejudicá-lo mais tarde, em frente ao juiz, e desata a falar para se proteger. São equívocos muito sérios. Do meu ponto de vista, vejo nossas pesquisas não só como cientificamente relevantes, mas como algo que busca o aperfeiçoamento de nossa Justiça. É justamente o contrário do que muitas pessoas dizem, que só queremos tornar as coisas ainda mais fáceis para os criminosos. Não se trata disso. Se a autoridade policial pode lançar mão de um enunciado simples e claro de declaração de direitos, isso apenas colabora com o trabalho da promotoria e faz dos julgamentos processos mais precisos e efetivos.
ConJur – De que forma?
Richard Rogers — Como expliquei, alguns críticos de nosso trabalho dizem que esse tipo de estudo apenas torna as coisas mais fáceis para os criminosos. Certa vez, quando iniciávamos uma pesquisa, um xerife nos disse que praticamente tínhamos sangue em nossas mãos por tentar proteger criminosos com tecnicismos. Este não é o caso. Pesquisas têm demonstrado (e não são só pesquisas minhas) que a confusão na compreensão das Advertências Miranda leva a confissões falsas por parte dos suspeitos, seja por limitações de conhecimento ou mesmo por problemas de inteligência e de ordem cognitiva. Outro ponto é a detenção de inocentes. Muitos dos suspeitos são facilmente intimidados pela figura do policial, e um número impressionante apresenta apenas transtornos psiquiátricos. Isso compromete e atrasa o trabalho da promotoria, já que se está detendo a pessoa errada e não o responsável pelo crime, que continua impune.
ConJur — O senhor percebe, em contrapartida, a abertura do sistema de Justiça aqui nos EUA em relação ao que pesquisas como a sua revelam?
Richard Rogers — Depende muito, mas, no geral, há um grande problema que envolve o senso comum. Um dos aspectos da Suprema Corte ter estabelecido as Advertências Miranda da forma como fizeram é que se criou uma falácia a esse respeito, de que todos conhecemos nossos direitos e que abrir mão de uma garantia constitucional sequer se trata de uma decisão de fato. É muito difícil quebrar a resistência e fazer as pessoas olharem além desses equívocos de concepção. Por exemplo, posso mencionar dois equívocos muito comuns?
ConJur — Claro.
Richard Rogers — Um dos enganos mais fundamentais de compreensão se dá no entendimento do que realmente significa o “direito de permanecer em silêncio”. Todos pensamos que sabemos o que isso significa. Você mencionou os filmes policiais. A maioria dos norte-americanos pensa então que temos o direito de permanecer calados independente do que isso resulte. Mas não se trata disso. Na verdade, o que ocorre é que o cidadão dispõe de uma salvaguarda constitucional que garante que não falar ou deixar de responder as perguntas dos oficiais de polícia não irá ser usado contra o réu no tribunal, sequer pode ser considerado como elemento de avaliação em uma corte. Em um dos estudos que realizamos, 30% dos suspeitos não conseguia entender que se ficassem em silêncio isso não iria prejudicá-los. E a maioria, depois de ser informada dos direitos através da Advertência Miranda, concluiu que permanecer em silêncio constituía evidência de culpabilidade. Como a frase muitas vezes é dita: “Tudo o que disser vai ser usado contra você no tribunal”, muitos suspeitos pensam: “Falar vai me incriminar, e o direito de ficar em silêncio não garante nada, logo, não falar também pode me incriminar porque demonstra que tenho algo a esconder”. Em outras palavras: “Falando ou não falando, estou ferrado”. Então, muitos começam a conversar com os policiais para tentar amenizar as consequências. Quando analisamos os suspeitos que eram estudantes universitários, o número dos que não conseguiam compreender a ideia corretamente subiu para 36%. Então, como disse, se falar ou não falar é indiferente, por que não falar?
ConJur — O modo de falar dos policiais também não pode ser uma forma de causar confusão?
Richard Rogers — A polícia pode inventar coisas e mesmo mentir para o réu, e isso é aceitável, pois consideramos parte do processo de investigação. Isso não é tomado como um problema. A Suprema Corte admite, por exemplo, que policiais possam mentir para o suspeito. Os policias então fazem o trabalho deles e podem dizer que conhecem uma testemunha que assistiu o indivíduo cometer o crime, quando, na verdade, não conhecem testemunha alguma. Ou ainda inventarem algo sobre as acusações, dizerem que há outras evidências contra o suspeito, quando não há. Só que a maioria das pessoas acredita que a Polícia está legalmente proibida de mentir. E isso as leva a falar e desconsiderar completamente a Advertência Miranda apresentada pelo oficial. Outro dado interessante é que metade dos suspeitos detidos em custódia acredita que se disser algo como: “o que vou falar agora quero que fique fora dos autos, off the record”, então o conteúdo do que disser não será considerado pela corte. Isso não existe, não há como fazer uma declaração off the record. Outros 25% pensam que se você não assinar um termo de recusa da Advertência Miranda, então ela não é legal, a Justiça não pode considerar o que o suspeito disser naquele momento. De tal modo, conversar um pouco pode não ser tão prejudicial. Enfim, são questões-chave que comprometem a clareza e a eficiência do trabalho da Polícia e da Justiça Criminal.
ConJur — Seus estudos mencionam também problemas com as traduções das Advertências Miranda para suspeitos que não falam inglês.
Richard Rogers — Sim. A língua mais presente no país depois do inglês é o espanhol. Se olharmos as traduções feitas para o espanhol, veremos que há uma série de problemas graves que comprometem a inteligibilidade do enunciado. Eu não disponho de nenhuma tradução em português aqui comigo. De qualquer forma, em 10% dos casos, verificamos que certas partes das advertências simplesmente não são traduzidas e incluídas na versão em espanhol. Muitos policiais portam a advertência impressa em cartões. De um lado, está em inglês, e de outro, em espanhol. Mas a tradução não confere. Por exemplo, algumas versões apresentavam a frase “você tem o direito de permanecer calado” como “você tem o direito de permanecer pintado com cal” [Nota: a confusão se dá porque, em espanhol, a palavra “callado”, que significa “calado”, foi trocada por “encalado”,que significa “coberto de cal”]. Isso não é impressionante? Trabalho com estudantes de doutorado que falam espanhol e que se deparam com traduções desse nível o tempo todo. Meu palpite é que muitas dessas traduções são feitas precariamente com softwares eletrônicos. São erros grosseiros e não se limitam apenas ao idioma. Mencionei que as Advertências Miranda juvenis são, por vezes, mais extensas. Compreendemos que a intenção era torná-las mais acessíveis aos jovens detidos em custódia, mas muitos especialistas em leis discordam da forma como é feito. Outro exemplo: me deparei com uma advertência que tentava explicar o que é um juiz para um suspeito juvenil e que descrevia então o juiz como um árbitro de beisebol. Não só a linguagem era inapropriada como a comparação muito equivocada, desconsiderando totalmente que a decisão do juiz pode simplesmente resultar em detenções que duram anos.
ConJur — Em que tipo de pesquisas o senhor está trabalhando agora?
Richard Rogers — Com Advertências Miranda, tenho duas ou três linhas de pesquisa em andamento. Tenho trabalhado também para desenvolver certas escalas de avaliação psicológica para serem usadas por psicólogos e psiquiatras. A intenção é padronizar a análise do texto das Advertências Miranda, encontrar um modelo formal de análise dos enunciados para podermos identificar problemas de compreensão que estes podem gerar. Como os que impedem que o suspeito entenda seus direitos e que, caso abra mão de suas garantias, o faça com alguma confiança. Temos tentado desenvolver uma espécie de escala para o vocabulário e assim verificar se indivíduos podem entender a linguagem básica dos Miranda. Dessa forma, conseguimos identificar problemas como quando o policial se refere aos “direitos” do suspeito, e ele compreende simplesmente como sendo uma orientação de direção do tipo “vá para a direita” [Nota: em inglês, a palavra “right” é usada em ambos os casos]. “Renúncia”, no sentido de abrir mão dos seus direitos, é outro vocábulo que dá margem para uma série de erros que, às vezes, levam a impasses em decisões judiciais. Há um padrão de equívocos que se repete e envolve o uso das frases. Depende, às vezes, do grau de conhecimento que o suspeito pensa ter dos seus direitos e das técnicas de coerção usadas pelos policiais, que podem ser mais rigorosos ou amigáveis. Algumas jurisdições exigem a presença dos pais ou do tutor quando o menor é detido e decide falar. Então, os policiais ligam para os pais e dizem: “Estamos com o seu garoto!” Quando os pais chegam, começam a disciplinar o menor na frente dos oficiais: “Conte para nós e para a Polícia o que aconteceu”, eles dizem, ignorando os aspectos legais do que estão fazendo. Enfim, é um universo de elementos o qual a Justiça Criminal tem que lidar e avaliar.
ConJur — Quando decidiu trabalhar com psicologia forense, o senhor imaginou que sua área de interesse estaria em questões ligadas às leis, ao funcionamento do sistema de Justiça Criminal e, em especial, trabalhar com questões que envolvem a compreensão da lei?
Richard Rogers — Quando concluí a faculdade não imaginava que viria a me interessar por psicologia forense. Eu pensava que iria trabalhar em algum centro comunitário de saúde mental ou algo do tipo. Porém, o primeiro emprego que me ofereceram foi em um hospital forense. Eu não sabia muito do assunto, mas eles pagavam bem e eu sempre tive um interesse amplo sobre questões legais e sobre a Justiça, de certa forma. Aquele foi o começo da minha carreira. De repente, estava trabalhando em um hospital de segurança máxima e lidando intensamente com o assunto. Então, fui admitido para trabalhar na Escola de Medicina da Universidade Rush, onde, na época, desenvolviam um programa acadêmico que abrangia estudos entre psiquiatria e Justiça. Foi quando pude tomar conhecimento do grande espectro de questões intelectuais e psicológicas que envolvem o mundo das leis e da criminalidade, e como proceder para avaliar as relações entre psicologia e Justiça.
ConJur — Qual o maior desafio de se trabalhar em colaboração com a Justiça e de analisá-la do ponto de vista científico, como pesquisador?
Richard Rogers — A dificuldade se dá principalmente na relação e no intercâmbio com outras áreas. Eu tenho realizado pesquisas com o que chamamos de competência e capacidade do réu de apresentar-se no tribunal e com avaliações de insanidade de suspeitos. Muitas vezes, os tribunais e mesmo a Suprema Corte criam regras tolas, baseadas em conceitos que não levam em consideração aspectos científicos ou psicológicos. E não dá para culpá-los, eles estão fazendo o seu trabalho, mas a questão é que os tribunais podem não estar suficientemente atentos ou serem sensíveis a aspectos psiquiátricos, médicos e técnicos. Posto isto, o desafio é como definir um critério e como desenvolver ferramentas para avaliar uma área que tem sua própria lógica e estrutura de funcionamento como é o caso da Justiça. De que forma organizar nosso estudo de campo nessa área sem perder de vista a complexidade de todos os conceitos envolvidos. O exemplo que me vem à mente é que algumas das descrições legais para “insanidade” se limitam ao conceito de que o criminoso “aprecia a criminalidade”. Porém, o que isso significa? A Justiça tem de lidar com uma gama muito ampla de referências e isso é um enorme desafio. Sobre insanidade, por exemplo, há milhares de páginas escritas sobre o assunto, tanto do ponto de vista jurídico, como do psicológico. Então, qual é a melhor forma de operacionalizar a atuação da Justiça quando ela tem que abordar noções como a de insanidade, sem que, para isso, todos tenham de ir à corte e dar sua opinião, tendo ou não conhecimento sobre o assunto?
ConJur — No exercício da Justiça, os profissionais têm que lidar com diferentes aspectos da vida humana. Como o senhor vê o aperfeiçoamento desse diálogo com outros campos?
Richard Rogers — O que ocorre — e eu estive envolvido em casos importantes — é que, às vezes, você tem uma dúzia de especialistas de diferentes áreas testemunhando para o juiz, cada qual com uma opinião diversa, contextualizada de acordo com seu campo de atuação, pois não há qualquer grau de concordância sobre o tema discutido. É claro que, até certo ponto, essa diversidade é benéfica, e minha intenção é avaliá-la em seus aspectos forenses.
Rafael Baliardo é correspodente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 13 de outubro de 2010

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Skype no Poder Judiciário


AO VIVO E EM CORES

Pelo Skype, Nancy Andrighi recebe mais advogados

Em um ano em que advocacia e Judiciário pareceram estar em pé de guerra por conta da implantação do Processo Judicial eletrônico, a tecnologia serviu para aproximar advogados ao Superior Tribunal de Justiça. Isso porque, em 2013, advogados passaram a poder despachar com a ministra Nancy Andrighi de casa ou do escritório, pela internet, via Skype — programa de telefonia com vídeo pela internet.
Às terças-feiras (e às vezes em outros dias também), a ministra senta à mesa de reuniões de seu gabinete com uma pilha de petições e memoriais à mão. Esses são os documentos dos processos que ela vai discutir com os advogados — cerca de 15 por dia — nas audiências virtuais. À sua frente, um notebook, pelo qual ela, na hora marcada, vê o advogado e se deixa filmar, dando início às conversas.
Durante todas as audiências acompanhadas pela ConJur, no dia 3 de dezembro, Nancy Andrighi agiu com desembaraço perante a câmera, discutindo o processo como se o advogado estivesse sentado à mesa. Assessores eram acionados para fazer ajustes no computador ou trazer documentos necessários, mas a ministra parecia ter o processo na ponta da língua. Na capa de cada pasta de processo, fica grampeada uma folha em que ela faz suas anotações sobre o caso.
A facilidade da ministra para lidar com a tecnologia é elogiada pelos advogados que podem despachar com ela sem sair de casa — do Rio Grande do Sul, de Mato Grosso, do Rio de Janeiro, de São Paulo, e até de Brasília alguns que estariam mais tarde no tribunal para a sessão de julgamentos.  
As regras da etiqueta seguidas no gabinete, porém, não se refletem em todas as conferências virtuais. Enquanto alguns advogados se apresentavam à ministra de terno e gravata, tendo ao fundo obras de arte do escritório em que trabalham, ou uma parede branca, outros, no conforto do lar, apareciam como quem acaba de sair da cama, com a camisa polo desabotoada, os pelos do peito à mostra, em um cenário com direito a brinquedos de criança espalhados pelo chão.
As mudanças de cenário e de indumentária, porém, não pareciam tirar a concentração da ministra, que discutia com afinco as peças. No dia 3 de dezembro, foi possível observar discussões interessantes. Em um caso, a ministra concordava com o argumento do advogado, mas ele não havia prequestionado o dispositivo legal que discutia na petição ao STJ. Depois de ouvir o operador do Direito, Nancy disse que iria “fazer um esforço hercúleo” para aceitar o recurso, pois a decisão questionada ia contra a jurisprudência do STJ.
Em outro caso, o mais interessante do dia, o advogado insistia que a ministra aceitasse os chamados terceiros embargos — Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração do Recurso Especial — de um caso onde seguradora e agente financeiro discutiam a quem caberia pagar as indenizações devidas a pessoas que perderam seus apartamentos num prédio que desabou em Recife, logo após sua inauguração.
Ao ouvir do representante da seguradora que o processo era complicado e que merecia discussão, Nancy Andrighi foi direta: “Será mesmo que merece, doutor?!”, questionou. Para o advogado, uma decisão favorável ao pagamento imediato da indenização aos moradores, abriria as porteiras para uma “indústria do dano moral”. Para a ministra, porém, não caberia falar nisso. “Doutor, se há uma indústria, é a de construir apartamentos com defeito, que deixaram essas pessoas sem casa há 15 anos. Se não querem que isso crie jurisprudência, paguem o que devem a essas pessoas e depois, se quiserem, vá reclamar com o agente financeiro que financiou o empreendimento”, sugeriu, com firmeza. “O que não é admissível é deixar essas pessoas nesse sofrimento por tanto tempo, elas que não têm nada a ver da briga da seguradora com a financeira”. O advogado sentiu o choque e prometeu levar o ponto de vista da ministra a seu cliente.
Para estar a par dos processos que vai discutir com os advogados nas sessões de terça-feira, a ministra usa as noites de segunda-feira para ler os processos e memoriais que serão levados para a audiência. “As noites de segunda-feira são sagradas para leitura, e as manhãs de terça, para atendimento”, define.
Com isso, diz Nancy Andrighi, ela passou a ganhar tempo para julgar os processos em seu gabinete. A explicação, diz ela, é que pelo Skype não tem cafezinho nem conversa fiada. Por isso, é possível receber mais advogados em menos tempo. Conhecida por ser direta, a ministra foi, em 2012, quem mais julgou no STJ, tendo recebido 9.043 processos e julgado 19.946, segundo os dados do Anuário da Justiça Brasil 2013.
A ministra foi a primeira a adotar as audiências via Skype, depois de uma tentativa de receber os advogados em audiências abertas. A iniciativa das audiências coletivas não foi bem recebida, pois os advogados reclamavam de levar “broncas” da ministra na frente de colegas. Já as reuniões virtuais parecem estar rendendo bons frutos, sendo alvo de elogios entre todos os que aparecem na tela do computador da ministra e a recebem, da mesma maneira, em casa ou no escritório, nas telas de seus computadores.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2014

Skype no Poder Judiciário


AO VIVO E EM CORES

Pelo Skype, Nancy Andrighi recebe mais advogados

Em um ano em que advocacia e Judiciário pareceram estar em pé de guerra por conta da implantação do Processo Judicial eletrônico, a tecnologia serviu para aproximar advogados ao Superior Tribunal de Justiça. Isso porque, em 2013, advogados passaram a poder despachar com a ministra Nancy Andrighi de casa ou do escritório, pela internet, via Skype — programa de telefonia com vídeo pela internet.
Às terças-feiras (e às vezes em outros dias também), a ministra senta à mesa de reuniões de seu gabinete com uma pilha de petições e memoriais à mão. Esses são os documentos dos processos que ela vai discutir com os advogados — cerca de 15 por dia — nas audiências virtuais. À sua frente, um notebook, pelo qual ela, na hora marcada, vê o advogado e se deixa filmar, dando início às conversas.
Durante todas as audiências acompanhadas pela ConJur, no dia 3 de dezembro, Nancy Andrighi agiu com desembaraço perante a câmera, discutindo o processo como se o advogado estivesse sentado à mesa. Assessores eram acionados para fazer ajustes no computador ou trazer documentos necessários, mas a ministra parecia ter o processo na ponta da língua. Na capa de cada pasta de processo, fica grampeada uma folha em que ela faz suas anotações sobre o caso.
A facilidade da ministra para lidar com a tecnologia é elogiada pelos advogados que podem despachar com ela sem sair de casa — do Rio Grande do Sul, de Mato Grosso, do Rio de Janeiro, de São Paulo, e até de Brasília alguns que estariam mais tarde no tribunal para a sessão de julgamentos.  
As regras da etiqueta seguidas no gabinete, porém, não se refletem em todas as conferências virtuais. Enquanto alguns advogados se apresentavam à ministra de terno e gravata, tendo ao fundo obras de arte do escritório em que trabalham, ou uma parede branca, outros, no conforto do lar, apareciam como quem acaba de sair da cama, com a camisa polo desabotoada, os pelos do peito à mostra, em um cenário com direito a brinquedos de criança espalhados pelo chão.
As mudanças de cenário e de indumentária, porém, não pareciam tirar a concentração da ministra, que discutia com afinco as peças. No dia 3 de dezembro, foi possível observar discussões interessantes. Em um caso, a ministra concordava com o argumento do advogado, mas ele não havia prequestionado o dispositivo legal que discutia na petição ao STJ. Depois de ouvir o operador do Direito, Nancy disse que iria “fazer um esforço hercúleo” para aceitar o recurso, pois a decisão questionada ia contra a jurisprudência do STJ.
Em outro caso, o mais interessante do dia, o advogado insistia que a ministra aceitasse os chamados terceiros embargos — Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração do Recurso Especial — de um caso onde seguradora e agente financeiro discutiam a quem caberia pagar as indenizações devidas a pessoas que perderam seus apartamentos num prédio que desabou em Recife, logo após sua inauguração.
Ao ouvir do representante da seguradora que o processo era complicado e que merecia discussão, Nancy Andrighi foi direta: “Será mesmo que merece, doutor?!”, questionou. Para o advogado, uma decisão favorável ao pagamento imediato da indenização aos moradores, abriria as porteiras para uma “indústria do dano moral”. Para a ministra, porém, não caberia falar nisso. “Doutor, se há uma indústria, é a de construir apartamentos com defeito, que deixaram essas pessoas sem casa há 15 anos. Se não querem que isso crie jurisprudência, paguem o que devem a essas pessoas e depois, se quiserem, vá reclamar com o agente financeiro que financiou o empreendimento”, sugeriu, com firmeza. “O que não é admissível é deixar essas pessoas nesse sofrimento por tanto tempo, elas que não têm nada a ver da briga da seguradora com a financeira”. O advogado sentiu o choque e prometeu levar o ponto de vista da ministra a seu cliente.
Para estar a par dos processos que vai discutir com os advogados nas sessões de terça-feira, a ministra usa as noites de segunda-feira para ler os processos e memoriais que serão levados para a audiência. “As noites de segunda-feira são sagradas para leitura, e as manhãs de terça, para atendimento”, define.
Com isso, diz Nancy Andrighi, ela passou a ganhar tempo para julgar os processos em seu gabinete. A explicação, diz ela, é que pelo Skype não tem cafezinho nem conversa fiada. Por isso, é possível receber mais advogados em menos tempo. Conhecida por ser direta, a ministra foi, em 2012, quem mais julgou no STJ, tendo recebido 9.043 processos e julgado 19.946, segundo os dados do Anuário da Justiça Brasil 2013.
A ministra foi a primeira a adotar as audiências via Skype, depois de uma tentativa de receber os advogados em audiências abertas. A iniciativa das audiências coletivas não foi bem recebida, pois os advogados reclamavam de levar “broncas” da ministra na frente de colegas. Já as reuniões virtuais parecem estar rendendo bons frutos, sendo alvo de elogios entre todos os que aparecem na tela do computador da ministra e a recebem, da mesma maneira, em casa ou no escritório, nas telas de seus computadores.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2014

domingo, 22 de dezembro de 2013

MacGyver Episódio 3

http://www.conjur.com.br/2013-dez-21/diario-classe-complexo-macgyver-modelos-juiz-episodio

Por uma leitura garantista do Sistema de Controle Social

Por uma leitura garantista do Sistema de Controle Social

 

1. Para introduzir o Garantismo Penal


1.1. Embora tenha sido editada uma nova Constituição em 1988 há inescondível déficit hermenêutico nos campos do Direito e Processo Penal no Brasil. A compreensão do Direito Penal e Processual válido precisa de realinhamento constitucional do sentido democrático, uma vez que tanto o Código Penal como o Código de Processo Penal são documentos editados, na matriz, sob outra ordem constitucional e ideológica, bem assim porque houve significativa modificação do desenho político criminal contemporâneo[1]. Ademais, a Constituição acolheu os Direitos Humanos em patamar capaz de dar eficácia imediata no campo de Controle Social[2]. De sorte que há a necessidade de adequação da própria noção do papel e função do Direito e do Processo Penal diante da redemocratização do país. E, esse trabalho ainda está sendo realizado, basicamente por força da (i) baixa constitucionalidade, entendida como a ausência de cultura democrática no Direito; (ii) necessária superação do aparente dilema entre sistemas acusatório versus inquisitório; (iii) herança equivocada de uma imaginária e nefasta “Teoria Geral do Processo”, quando, na verdade, os fundamentos do processo penal democrático assumem viés individual e não coletivo, a saber, não cabe “instrumentalidade processual penal pro societate[3]; (iv) difusão de modelo coletivo de “Segurança Pública” que fomenta uma certa “Cultura do Medo”; (v) expansionismo do Direito Penal e recrudescimento dos meios de controle social, a partir da lógica de diminuição dos custos estatais; (vi) prevalência de teorias totalitárias, como Direito Penal do Inimigo, atreladas ao discurso da Lei e da Ordem[4].
1.2. Nesse contexto, parece que se mostra necessário repensar as coordenadas simbólicas do campo do Direito e Processo Penal adotada perspectiva crítica, mas sem se descolar da realidadae, ou seja, da possibilidade de diálogo entre o saber produzido no campo da Universidade e o que acontece no plano da prática forense, não na perspectiva unitária, mas sim de um diálogo proveitoso, em que o ponto de partida seja a realização do Estado Democrático de Direito[5]. Ainda assim, deve-se superar a noção idealizada de Jurisdição, Ação e Processo (Cap. 4o), partindo-se da teoria dos jogos (Cap. 1o).

2. Garantismo não é Religião: é limitação do Poder Estatal.


2.1. Para o fim de entender a intervenção Estatal se recorrerá ao balizamento apresentando pelo “Garantismo Penal” de Luigi Ferrajoli[6], sem que ele se transforme em Religião[7], pois é passível de muitas criticas[8]. Partindo de sólida Teoria do Direito[9], Ferrajoli apresenta quatro frentes para compreensão de sua proposta[10]: (i) revisão da teoria da validade, diferenciando validade/material e vigência/formal das normas jurídicas; (ii) distinção entre as dimensões da Democracia entre formal e substancial, tendo os Direitos Fundamentais como índice; (iii) ratificação do lugar de garante do magistrado numa democracia mediante a sujeição do juiz à lei, não mais pela mera legalidade, mas da estrita legalidade, na qual a validade da norma (princípio e regra) devem guardar pertinência material e formal com a Constituição da República; e (iv) revisão do papel critico da ciência jurídica não mais com a missão exclusivamente descritiva, mas acrescentando contornos críticos e de projeção ao futuro. Supera, assim, a noção meramente técnica, a saber, reconhece a responsabilidade do ator jurídico e não de singelo aplicador da norma.
2.2. Essa perspectiva teórica encontra esteio na Constituição da República dado que baseada na dignidade da pessoa humana[11] e nos Direitos Fundamentais[12], os quais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena da deslegitimação democrática da ação. Em face da supremacia Constitucional dos direitos indicados no corpo de Constituições rígidas ou nela referidos (CR, art. 5º, § 2º), como a brasileira de 1988, e do princípio da legalidade, a que todos os poderes estão submetidos, emerge a necessidade de garantir esses direitos a todos os sujeitos, principalmente os processados criminalmente, pela peculiar situação que ocupam. Há filiação à tradição de defesa dos Direitos Individuais em face do Estado, na linha Iluminista, sem se descurar das contingências históricas[13].
2.3. Nesse pensar, Ferrajoli aponta quatro classes de direitos: (i) Direitos Humanos, os quais são os direitos primários das pessoas e concernem indistintamente a todos os seres humanos; (ii) Direitos públicos, que são os direitos primários reconhecidos somente aos cidadãos; (iii) Direitos civis, os quais são direitos secundários adstritos a todas as pessoas humanas capazes de agir, tais como a liberdade de contratar, de negociar, de escolher e trocar de trabalho, vinculados à autonomia privada, na matriz capitalista de Mercado; e (iv) Direitos políticos, os quais são direitos secundários reservados exclusivamente aos cidadãos, no qual se baseia a representação e a democracia política[14].
2.4. A partir desta matriz e aprofundando a proposta, Ferrajoli propõe quatro teses em relação aos Direitos Fundamentais: (i) A diferença de estrutura entre Direitos Fundamentais e Direitos Patrimoniais, dado que os primeiros são vinculados a todos ou a uma classe de sujeitos, sem exclusão dos demais, enquanto os direitos patrimoniais, pela sua formulação, excluem todos os demais que não são titulares. Por certo o acordo semântico de Direito Subjetivo tem sido utilizado pelo Direito para ocultar as caraterísticas antagônicas que subjazem a esta classificação aparentemente homogênea, mas que esconde uma enorme heterogeneidade. Para comprovar tal assertiva, basta indicar: direitos inclusivos/exclusivos, universais/singulares, indisponíveis/disponíveis[15]; (ii) O respeito e implementação dos Direitos Fundamentais representam interesses e expectativas de todos e formam, assim, o parâmetro da igualdade jurídica, capaz de justificar a aferição da democracia material. Essa dimensão não é outra coisa senão o conjunto de garantias asseguradas pelo Estado Democrático de Direito; (iii) A pretensão supranacional de grande parte dos Direitos Fundamentais, uma vez que com as declarações internacionais, além do direito interno, uma ordem externa impõe limites externos aos poderes públicos; (iv) A relação entre direitos e garantias. Os Direitos Fundamentais se constituem em expectativas negativas ou positivas, as quais correspondem obrigações de prestação ou proibição de lesão – garantias primárias. A reparação ou sancionamento judicial constituem em garantias secundárias, decorrentes da violação das garantias primárias. A inexistência de garantias para efetivação dos direitos, em suma, leva a uma lacuna que torna os direitos declarados inobservados[16].
2.5. Esse retorno à Teoria Geral do Direito se mostra absolutamente importante desde que acolhidas as quatro teses, eis que implica revisão da estrutura do Direito Positivo, com reflexos inafastáveis no Direito Penal e Processual Penal. Revisitada, portanto, a formulação dos Direitos Fundamentais, restam fixadas as diferenças marcantes, consistente a primeira na circunstância de que os Direitos Fundamentais são universais, enquanto os Direitos Patrimoniais são singulares, excludentes dos demais. Aqui existe um titular determinado; nos Direitos Fundamentais todos o são. Não se diferencia Direitos Fundamentais pela qualidade ou quantidade, como se procede nos Direitos Patrimoniais. Os Direitos Fundamentais são inclusivos e formam a base da igualdade jurídica, enquanto os Direitos Patrimoniais são exclusivos (se eu sou proprietário da casa, o outro não é). A segunda diferença é, talvez, a mais relevante. Os Direitos Fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis, intransigíveis e personalíssimos. Ao contrário, os Direitos Patrimoniais são disponíveis por sua natureza, negociáveis e alienáveis. Estes se acumulam e aqueles permanecem invariáveis. Os bens se adquirem, trocam-se e se vendem. As liberdades não se trocam nem se acumulam. O fato de serem indisponíveis impede que interesses políticos e/ou econômicos violem os Direitos Fundamentais; não se pode vender ou trocar a liberdade. O ser humano os possui como tal, sem que lhe seja acrescido. Resultado disso é que se não pode alienar a vida, a liberdade pessoal ou o direito ao devido processo legal, por exemplo, mesmo que se queira. Em processo penal não é admitida a confissão desprovida de outros elementos, como era na Inquisição. A terceira diferença, consequência da segunda, é que os Direitos Patrimoniais são disponíveis, podendo ser modificados, extintos, por atos jurídicos. Os Direitos Fundamentais, ao revés, são reconhecidos ex vi legis, por normas gerais, normalmente de status constitucional. Em suma, enquanto os Direitos Fundamentais são normas, os Direitos Patrimoniais são regulados por normas. A quarta diferença consiste em que os Direitos Patrimoniais são horizontais, os Direitos Fundamentais são verticais, em um duplo sentido. Enquanto umas são civilistas, privadas, decorrentes de relações intersubjetivas da esfera privada, as de Direitos Fundamentais são publicistas, do indivíduo para com o Estado. Ademais, há que se considerar que os Direitos Patrimoniais são disposições de não lesão entre os particulares; já no caso de Direitos Fundamentais, sua violação repercute na invalidade de leis e decisões estatais[17].
2.6. A Teoria Garantista representa ao mesmo tempo o resgate e a valorização da Constituição como documento constituinte da sociedade. Esse resgate Constitucional decorre justamente da necessidade da existência de um núcleo jurídico irredutível/fundamental capaz de estruturar a sociedade, fixando a forma e a unidade política das tarefas estatais, os procedimentos para resolução de conflitos emergentes, elencando os limites materiais do Estado, as garantias e direitos fundamentais e, ainda, disciplinando o processo de formação político-jurídico do Estado, aberto ao devir. A Constituição é uma disposição fundante da convivência e fonte da legitimidade estatal, não sendo vazio[18], mas uma coalizão de vontades com conteúdo, materializado pelos Direitos Fundamentais. A história do constitucionalismo é a progressiva ampliação da esfera pública de direitos, de conquistas e rupturas. Em outras palavras, a Constituição, nesta concepção garantista, deixa de ser meramente normativa (formal), buscando resgatar o seu próprio conteúdo formador, indicativo do modelo de sociedade que se pretende e de cujas linhas as práticas jurídicas não podem se afastar, inclusive no âmbito do Direito e do Processo Penal. Como primeira emanação normativa do Estado, aponta os limites e obrigações, sem se perder de vista que é no processo de atribuição de sentido (concretização) que se realiza.
2.7. Assim é que a Constituição da República é a norma maior, sendo o fundamento de validade material e formal do sistema. Advem disto o fato de que todos os dispositivos e interpretações possíveis, inclusive o de transformar substantivo em adjetivo – exclusivamente –, como acontece com o art. 144, § 4o, da CR, por exemplo, devem perpassar pelo seu controle formal e material, não podendo ser infringida ou modificada ao talante dos governantes públicos, mesmo em nome da maioria – esfera do indecidível –, dado que as Constituições rígidas, como a brasileira de 1988, devem sofrer processo específico para reforma, ciente, ainda, da existência de cláusulas pétreas. Na prática, a aplicação de qualquer norma jurídica precisa sofrer a preliminar oxigenação constitucional[19] de viés garantista, para aferição da constitucionalidade material e formal da norma jurídica. É somente assim que se dá a devida força normativa à Constituição[20].

3. Garantismo Penal e Direito Penal Mínimo


3.1. No campo do Direito Penal o manejo do poder no Estado Democrático de Direito deve se dar de maneira controlada, evitando-se a arbitrariedade dos eventuais investidos no exercício do poder Estatal. Desta forma, para que as sanções possam se legitimar democraticamente precisam respeitar os Direitos Fundamentais, apoiando-se numa cultura igualitária e sujeita à verificação de suas motivações, porque o poder estatal deve ser limitado, a saber, somente pode fazer algo – por seus agentes – quando expressamente autorizado.[21]
3.2. Assim é que no modelo ideal de Ferrajoli são indicados onze princípios necessários e sucessivos de legitimidade do sistema penal e, desta forma, da sanção[22]. São eles: pena, delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, jurisdição, acusação, prova e defesa. A ausência de um deles torna a resposta estatal, lida a partir do Garantismo, ilegítima, constituindo, cada um (dos princípios), condição da responsabilidade penal.
São, assim, prescritivas de regras processuais ideais ao modelo garantista sem que o seu preenchimento in totum obrigue uma sanção; mas o contrário, pois somente com o preenchimento (de to)das implicações deônticas do modelo é que o sistema está autorizado a emitir um juízo condenatório[23].
3.3. A classificação divide-se em: a) garantias penais: “delito”, “lei”, “necessidade”, “ofensa”, “ação” e “culpabilidade”; e b) garantias processuais: “jurisdição”, “acusação”, “prova” e “defesa”. Em sendo a “pena" excluída do rol de garantias, por ser apenas uma possibilidade ao cabo do processo, o modelo ideal full é composto por dez axiomas, vertidos em latim:
A1 Nulla poena sine crimine/ A2 Nullum crimen sine lege/ A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate/ A4 Nulla necessitas sine injuria/ A5 Nulla injuria sine actione/ A6 Nulla actio sine culpa/ A7 Nulla culpa sine judicio/ A8 Nullum judicium sine accusatione/ A9 Nulla accusatio sine probatione/ A10 Nulla probatio sine defensione.
Esses princípios garantistas podem ser vertidos em axiomas, respectivamente: 
1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionaridade, também no sentido lato e no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.
3.4. A par disto, cada sistema concreto poderá ser avaliado como de uma tendência ao ’direito penal mínimo’ ou ao ‘direito penal máximo’, conforme satisfaça as condições antes indicadas, investindo-o de racionalidade e certeza, na melhor tradição liberal. Garantismo e racionalidade encontram-se, pois, imbricados na pretensão de construir a legitimidade do sistema punitivo, mediante o estabelecimento de uma tecnologia apta e democraticamente sustentada pelos Direitos Fundamentais. Essa certeza/racionalidade buscada pelos Sistemas, divide-se, consoante cada modelo – máximo ou mínimo –, na seguinte opção segundo Ferrajoli: enquanto para o modelo máximo, a certeza deve impedir que “nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido[24]; no caso do direito penal mínimo, a atuação se dá no sentido de que “nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune.[25] Para o modelo penal mínimo, apesar da previsão em lei do tipo penal, somente se comprovada processualmente a conduta é que poderá se impor uma sanção, levando a sério a ‘presunção de inocência.’ De outra face, o modelo penal máximo golpeia esta garantia, na ilusão de colher nas malhas do direito penal todos os culpados[26].
3.5. Acrescente-se que o Poder Legislativo encontra, ainda, a barreira material dos Direitos Fundamentais em duplo sentido. Partindo-se do Direito Penal como última ratio (princípios da lesividade, necessidade e materialidade), a regulamentação de condutas deve se ater à realização dos Princípios Constitucionais do Estado Democrático de Direito, construindo-se, dessa forma, modelo minimalista de atuação estatal que promova, de um lado, a realização destes Princípios e, de outro, impeça suas violações, como de fato ocorre com a explosão legislativa penal contemporânea, quer pelas motivações de manutenção do status quo, como pela ‘Esquerda Punitiva’[27]. Discute-se, no contexto, a necessidade de teoria fundamentadora/justificadora da sanção[28]. Entretanto, a pena, longe de uma fundamentação jurídica, possui somente uma justificação política, de ato de força estatal. É afastada qualquer justificação, retributiva ou preventiva, da medida, conforme explicita o Garantismo Jurídico, na pena tupiniquim de Carvalho[29]. Relegada a discussão abolicionista (Foucault, Mathiesen, Christie e Hulsman)[30], assume-se a postura garantista-jurídico-penal, informada pelo Princípio da Secularização e da Laicização[31] do Estado, da Teoria Agnóstica da Pena. Essa teoria, percebendo a imposição como ato de poder, tal qual a guerra[32], imputa ao direito penal a finalidade de redução das violências praticadas pelo Estado[33]. Existiria, portanto, uma dupla funcionalidade da sanção. Primeiro impedindo a vingança privada (abusiva e espúria), eis que quem é juiz em causa própria se vinga desmesuradamente – baluarte Iluminista e constante no pensamento do contratualista Locke[34]. Em segundo lugar restringindo a manifestação do poder político estatal (pena) se dê sem limites, violando os Direitos Fundamentais, nos exatos limites da estrita legalidade. Nada, absolutamente nada de retribuição ou prevenção (geral ou especial), consoante afirma Ferrajoli: “O paradigma do direito penal mínimo assume como única justificação do direito penal o seu papel de lei do mais fraco em contrapartida à lei do mais forte, que vigoraria na sua ausência; portanto, não genericamente a defesa social, mas sim a defesa do mais fraco, que no momento do delito é a parte ofendida, no momento do processo é o acusado e, por fim, no momento da execução, é o réu.[35]
3.6. Para o atendimento desta pretensão necessária a releitura efetuada do ‘Princípio da Legalidade’ não mais somente verificável pela edição formal da norma jurídica (mera legalidade, vigência), mas principalmente pelo preenchimento dos dez axiomas garantistas (estrita legalidade, validade). O ‘Princípio da Legalidade’ precisa, então, ser relido, não bastando mais a simples previsão legal do tipo penal, dado que essa legalidade formal é fonte, em alguns casos, de um direito penal substancialista.  Assim é que o Direito Penal secularizado precisa indicar tipos penais regulamentares, isto é, que se vinculem ao mundo da vida, impedindo, assim, que o processo sirva de mero simulacro. Dito de outra forma, as adjetivações ou perseguições tópicas, como no caso de ‘bruxas’, ‘subversivos’, ‘hereges’, ‘inimigos do povo’[36] (ainda presentes formalmente, por exemplo, na Lei de Contravenções Penais[37]), dentre outros, estão expungidas do Direito Penal Garantista por não se vincularem a condutas possíveis, mas a elementos constitutivos do sujeito[38]. É preciso que o tipo penal prescreva uma proibição, modalidade deôntica, sob pena de deslegitimação epistemológica do próprio tipo penal. Esses elementos decorrem da secularização do Estado (e do Direito Penal) contemporâneo, o qual deixa de lado os aspectos ditos ‘intrínsecos’ da conduta, adjetivada de imoral, anormal ou abjeta, para se resumir, no Estado Democrático de Direito, à expressa previsão legal do tipo penal, ou seja: “é aquele formalmente indicado pela lei como pressuposto necessário para a aplicação de uma pena, segundo a clássica fórmula nulla poena et nullum crimen sine lege.”[39] Agrega-se ao primeiro a impossibilidade de se analisar o interior (subjetividade do agente) – sempre arbitrária – nem o julgar por seus antecedentes ou conduta social, como fazia o ‘direito penal do autor’, restringindo-se democraticamente o objeto para “figuras empíricas e objetivas de comportamento, segundo a outra máxima clássica: nulla poena sine crimine et sine culpa.”[40] No tipo penal do autor inexiste conduta ‘regulativa’ a ser comprovada, senão situações ‘constitutivas’ da personalidade do acusado, independentemente da existência de ‘ação’ e ‘ofensividade’, sendo, pois, substancialista[41].
3.7. Partindo-se do Direito Penal como última ratio, ou seja, como o último recurso democrático diante da vergonhosa história das penas[42], brevemente indicadas como de morte, privativa de liberdade e patrimonial, excluída a primeira pois desprovida de qualquer fim ou respeito ao acusado, as demais se constituem em técnicas de privação de bens, em tese, proporcional à gravidade da conduta em relação ao bem jurídico tutelado, segundo critérios estabelecidos pelo Poder Legislativo, na perspectiva de conferir caráter abstrato e igualitário ao Direito Penal. Ferrajoli sublinha: “A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um. Frente à artificial função de defesa social, não é arriscado afirmar que o conjunto das penas cominadas na história tem produzido ao gênero humano um custo de sangue, de vidas e de padecimentos incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos os delitos.”[43] Na sua proposta, Ferrajoli aponta para a construção de um ‘direito penal mínimo’, entregando para outros mecanismos de resolução de conflito – leia-se extra-penais – cuja necessidade de intervenção, via aparelho repressor penal não esteja devidamente justificada. Este critério utilitarista reformado e humanitário procura garantir, também, que o sujeito não seja submetido às imposições totalitárias de índole moralizante, uma vez que o discurso da reeducação é anti-democrático[44]. Assim é que somente nos casos em que os ‘efeitos lesivos’ das condutas praticadas possam justificar os custos das penas e proibições, as sanções estariam autorizadas.
3.8. Consequência direta desse princípio é a redução do número de tipos penais, a diminuição do tempo das sanções, as quais por serem longas demais, excluem o sujeito da sociedade e são desumanas, mormente nas condições em que são executadas, bem como a deslegitimidade das sanções pecuniárias e dos ‘crimes de bagatela’, que não justificam nem mesmo a instauração do processo[45], além dos de cunho moralizante. Por isto que: “Se o direito penal responde somente ao objetivo de tutelar os cidadãos e de minimizar a violência, as únicas proibições penais justificadas por sua ‘absoluta necessidade’ são, por sua vez, as proibições mínimas necessárias, isto é, as estabelecidas para impedir condutas lesivas que, acrescentadas à reação informal que comportam, suporiam uma maior violência e uma mais grave lesão de direitos do que as geradas institucionalmente pelo direito penal.[46] A aplicação de uma sanção exige a lesividade mensurável do resultado da ação, lida a partir dos seus efeitos. Essa é a carga do princípio da ‘lesividade’. Isto porque as palavras ‘dano’, ‘lesão’ e ‘bem jurídico’ demandam uma atribuição de sentido, um preenchimento semântico, vinculado aos fundamentos do direito de punir, ou seja, “com os benefícios que com ela se pretendem alcançar.”[47] Resumindo a discussão sobre os equívocos da evolução do conceito de ‘bem jurídico’, o qual deixou de ter como referencial o ponto de vista externo, na direção contrária do pensamento ‘Iluminista’, passando a tutelar situações de ordem interna e autoritárias[48].
3.9. Com efeito, resta arredada a possibilidade da fixação, pelo Estado, de modelo único de comportamente interno, de pensamento, enfim, totalitário, abrindo-se espaço para a construção da alteridade, dos direitos do cidadão a partir do ‘princípio da tolerância’, possibilitando o direito de pensar – liberdade de consciência – conforme as próprias convicções morais e éticas[49], e tendo como parâmetro de atuação penal somente os efeitos da ação e jamais as potencialidades hipotéticas. Resta tutelada a liberdade da construção da singularidade da personalidade (ser perverso, mau, imoral, perigoso), até porque essas ilações jamais poderiam ser objeto de um processo garantista, devido à impossibilidade de reconstrução da conduta, ademais, inexistente. Não é sem motivo que Ferrajoli anota: “Fica, pois, claro que o princípio da materialidade da ação é o coração do garantismo penal, que dá valor político e consistência lógica e jurídica a grande parte das demais garantias.”[50] Embora seja fundamental a existência material da ação, desde o século XIX duas teorias solaparam esta garantia. A primeira fomentadora de um ‘delinqüente natural’ e de uma ‘Defesa Social’, construída sobre a nefasta e insustentável noção de ‘periculosidade’, a qual é aquilatada (!?) por critérios pseudo-científicos e absolutamente insustentáveis epistemológica e democraticamente, cujos herdeiros saudosistas ainda frequentam, diariamente, os foros. De outro lado, o ‘tipo de autor’, no qual a ação é reduzida ao analisar a personalidade do agente, livre de qualquer ação, com claros propósitos ideológicos[51].
3.10. Atrelado à concepção de racionalidade e consciência, próprio da Modernidade, o ‘princípio da culpabilidade’ é entendido como a decisão preliminar e consciente acerca da vontade de agir, de intencionalmente compreender e proceder – elemento subjetivo – em face de uma regra regulativa. Essa decisão consciente contrapõe-se aos modelos que aceitam a responsabilidade penal sem culpa ou intenção: responsabilidade objetiva. Aponta como fundamentos políticos externos a ação material, seu caráter intimidatório, a possibilidade de previsão do agir social conforme as regras e as únicas (condutas) que podem ser logicamente proibidas. Suas modalidades são o dolo e a culpa, com as diversas classificações doutrinárias possíveis. O importante é que deva ser imputável a causa à ação decorrente de ato de vontade[52], dado que há uma necessária diferença entre ‘culpabilidade’ e ‘responsabilidade’, dado que esta é a sujeição à sanção como conseqüência da conduta. O dilema metafísico do ‘determinismo’ e do ‘livre-arbítrio’ resta superado, contudo, pelo Sistema Garantista (SG). Para os ‘deterministas’ a pessoa não poderia ter agido de outra forma, já que sua ação está condicionada a outros elementos que independem de sua vontade; o agente é objetificado. De outra face, os partidários do ‘livre-arbítrio’ entendem que se não há um elemento externo capaz de abalar a capacidade psíquica do agente, este poderia ter agido de forma diferente. Ambas concepções desconsideram o caráter material da ação, abrindo ensejo para práticas antigarantistas. Ferrajoli sublinha que “a consequência é que no primeiro caso temos um resultado sem culpa e, no segundo, uma culpa sem resultado, destituída da mediação, e, em qualquer dos casos, da ação culpável.”[53] Corolário do ‘determinismo’ é a objetificação do sujeito e a preparação do Estado na ‘Defesa Social’ das personalidades desviadas e a construção do conceito de ‘periculosidade’, o qual vem de encontro à construção histórica da culpabilidade. Já o ‘livre-arbítrio’ deixa espaço para julgamento subjetivo do agente, como se fazia no ‘direito penal do autor’, isto é, da culpa do homem e não de sua ação[54].
3.11. Para o ‘princípio da culpabilidade’ propugnado por Ferrajoli, são necessários dois requisitos: a) que o proibido decorra de uma comissão/omissão verificável numa ação regulativa e não da subjetividade do agente; e b) que ex ante haja possibilidade desta comissão/omissão. Esta opção deixa de ser vista desde uma percepção ontológica, passando a ser deontológica de ‘eleição’ entre possibilidades de ‘ação’ e não de ‘ser’[55]. Arredada, pois, a ideia de se imiscuir na personalidade do agente, perdem sentido as construções sobre a ‘capacidade criminal’, ‘reincidência’, ‘tendência para delinqüir’ e outras preciosidades totalitárias e anti-democráticas construídas com base nas concepções criticadas e marcantemente substancialistas e discricionárias, como se verifica nos crimes de associação, por exemplo.
3.12. Nesse contexto garantista é que se pode analisar o panorama do estado da arte no Brasil, tarefa, todavia, para se continuar no cotidiano das violações diárias, palco dos dilemas de infetividade constitucional, desvelando, por um lado, a necessidade de teoria sustentadora da praxis e, de outro, que a noção de processo precisa ser lida pela teoria dos jogos.




[1] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2005; PRADO, Geraldo. Em torno da jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[2] Embora difundida a existência da máxima “in dubio pro societate” no recebimento da denúncia e na decisão de pronûncia, inexiste disposição legal para tal fundamento. É prática autoritária deprovida de sustentação democrática.
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um processo penal democrático: Crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 63-97.
[4] Consultar: FRANÇA, Leandro Ayres. Inimigo ou a inconveniência de existiir. Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2012.
[5] PEDRA, Adriano Sant’ana. A Constituição viva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012; OMMATI,José EMÍLIO Medauar; Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
[6] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 2002., p. 29-680.
[7] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. XXI: “O garantismo não é uma religião e seus defensores não são profetas ou pregadores utópicos. Trata-se de um sistema incompleto e nem sempre harmônico, mas sua principal virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade, baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de conter os abusos do poder.”
[8] PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do Garantismo. Uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012; GIANFORMAGGIO, Letizia (org.) Le ragioni del garantismo: discutendo com Luigi Ferrajoli. Torino: G. Giappichelli Editore, 1993; QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas considerações críticas. In: SANTOS, Rogério Dultra dos. Introdução crítica ao estudo do sistema penal. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 117-127; CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro. Garantismo: estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid; Trotta, 2005; FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz. (orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Vols. I e II. Bari: Laterza, 2007. Embora essa obra seja posterior ao Direito e Razão, reitera as posições de garantia do processo em face do sujeito. No mesmo sentido; FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma disusi´n sobre derecho y democracia. Madrid: Trotta, 2006.
[10] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías..., p. 20. Ressalta-se que não se deve confundir essa introdução com os três significados de “garantismo” indicados no capítulo 13 de FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 683-686.
[11] SARLET, Ingo. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
[12] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías..., p. 23-4: “Los derechos fundamentales se configuran como otros tantos vínculos sustanciales impuestos a la democracia política: vínculos negativos, generados por los derechos de libertad que ninguna mayoria puede violar; vínculos positivos, generados por los derechos sociales que ninguna mayoría puede dejar de satisfacer.”
[13] CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 161.
[14] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001, p. 22-23.
[15] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales..., p. 25.
[16] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales..., p. 24-26.
[17] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales..., p. 30-34.
[18] ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 95.
[19] MORAIS DA ROSA, Alexandre. O que é garantismo jurídico. Florianópolis: Habitus, 2003, p. 38.
[20] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991, p. 25.
[21] BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatorio. Campomanes: Buenos Aires, 2000, p. 70: “El poder es sumamente intenso y, por lo tanto, debe ser cuidadosamente limitado. Si la sociedad ha tomado la decisión de dotar a algunos funcionarios (los jueces) del poder de encerrar a otros seres humanos en ‘jaulas’ (las cárceles) esse poder no puede quedar librado a la arbitrariedad y la falta de control.”.
[22] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 88: “Aqui bastará precisar que por ‘pena’ se deve entender qualquer medida aflitiva imposta juridicamente por meio do processo penal; por ‘delito’, qualquer fenômeno legalmente previsto como pressuposto de uma pena; por ‘lei’, qualquer norma emanada do legislador; por ‘necessidade’, a função de tutela de bens fundamentais que justifica as proibições e as penas; por ‘ofensa’, a lesão de um ou de vários de tais bens; por ‘ação’, um comportamento humano exterior, material ou empiricamente manifestável, tanto comissivo quanto omissivo; por ‘culpabilidade’, o nexo de imputação de um delito a seu autor, consistente na consciência e vontade deste para com aquele; por ‘juridição’, o procedimento mediante o qual se verifica ou refuta a hipótese da comissão de um delito; por ‘acusação’, a formulação de tal hipótese por parte de um órgão separado dos julgadores; por ‘prova’, a verificação do fato tomado como hipótese pela acusação e qualificado como delito pela lei; por ‘defesa’, o exercício do direito de contraditar e refutar a acusação.”
[23] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 74: “Cada uma das implicações deônticas – ou princípios – de que se compõe todo modelo de direito penal enuncia, portanto, uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da pena. Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária, na ausência da qual não está permitido ou está proibido punir.”
[24] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 84.
[25] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 85.
[26] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 441.
[27] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 79-92, 1996; CHIES, Luiz Antônio Bogo. É possível se ter o Abolicionismo como meta, admitindo-se o Garantismo como estratégia? In: CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Orgs.). Diálogos Sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 161-219.
[28] Evidentemente que muitas críticas podem ser elaboradas de diversos lugares teóricos e práticos, desde o abolicionismo até o Movimento da Lei e Ordem, para ficar somente em extremos, ambos na defesa de suas ideias, justificando-se a consulta de trabalhos críticos sobre o tema, alguns referidos no corpo do trabalho.
[29] CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena: O modelo garantista de limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de. Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 3-43.
[30] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997; BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
[31] CATROGA, Fernando. Secularização, Laicidade e Religião Civil. Coimbra: Almedina, 2006; MARRAMAO, Giacomo. Poder e Secularização: as categorias do tempo. Trad. Guilherme Alberto Gomes de Andrade. São Paulo: UNESP, 1995.
[32] CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena..., p. 36: “Entendida como fenômeno da política, a pena, assim como a guerra, não encontra sustentação no direito, pelo contrário, simboliza a própria negação do jurídico. Ambas (pena e guerra) se constituem através da potencialização da violência e da imposição incontrolada de dor e sofrimento.”
[33] CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena..., p. 32-33: “Ao representar o modelo minimalista de redução das penas, [o garantismo] rompe com a tradição da doutrina penal em direcionar todo o escopo da sanção à prevenção de novos delitos, tanto pela via individual (prevenção especial positiva) como pela coletiva (prevenção geral negativa). Ao contrário dos modelos defensistas que demonizam o autor do ilícito penal, utilizando a pena como forma de tutela social, o modelo garantista recupera a funcionalidade da pena na restrição e imposição de limites ao arbítrio sancionatório judicial e administrativo.”
[34] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias..., p. 42: “O raciocínio de Locke se desenvolve desta forma em quatro assertivas: as leis naturais podem ser violadas; as violações das leis naturais devem ser punidas e os danos reparados; o poder de punir e de exigir reparação cabe, no estado de natureza, à própria pessoa vitimada; quem é juiz em causa própria habitualmente não é imparcial e tende a vingar-se em vez de punir.”
[35] FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrática. Trad. Carlos Arthur Hawker Costa. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 12, p. 31-39, 2002, p. 32.
[36] DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e Seus Inimigos: a repressão política na história do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
[37] COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 185-186.
[38] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 31: “Com caráter ‘constitutivo’ e não ‘regulamentar’ daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os ‘desocupados’ e os ‘vagabundos’, os ‘propensos a delinqüir’, os ‘dedicados a tráficos ilícitos’, os ‘socialmente perigosos’ e outros semelhantes.”
[39] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 30.
[40] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 30.
[41] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 80. “Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais perversas no esquema penal do chamado tipo de autor, onde a hipótese normativa de desvio é simultaneamente ‘sem ação’ e ‘sem fato ofensivo’.”
[42] FOUCAULT, Michael. Resumo dos cursos do Collège de France. Trad. Andrea Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 11-44; FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2000. Com Foucault pode-se também ter uma dimensão das atrocidades praticadas em nome da aplicação de sanções, basicamente de quatro formas: a) exílio/banimento; b) compensação/conversão em pecúnia; c) marca física ou exposição vexatória; e d) enclausuramento.
[43] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 310.
[44] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 319: “Que não reeduque, mas também que não deseduque, que não tenha uma função corretiva, mas tampouco uma função corruptora; que não pretenda fazer o réu melhor, mas que tampouco o torne pior. Mas para tal fim não há necessidade de atividades específicas diferenciadas e personalizadas.”
[45] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; BUENO DE CARVALHO, Amilton. Garantismo Penal aplicado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 225-230; BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, criminalização e Direito Penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003..
[46] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 373.
[47] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 374.
[48] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 376
[49] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 385. “Observado em sentido negativo, como limite à intervenção penal do Estado, este princípio marca o nascimento da moderna figura do cidadão, como sujeito suscetível de vínculos em seu atuar visível, mas imune, em seu ser, a limites e controles; e equivale, em razão disso, à tutela da sua liberdade interior como pressuposto não somente da sua vida moral mas, também, da sua liberdade exterior para realizar tudo o que não esteja proibido. Observado em sentido positivo, traduz-se no respeito à pessoa humana enquanto tal e na tutela da sua identidade, inclusive desviada, ao abrigo de práticas constritivas, inquisitoriais ou corretivas dirigidas a violentá-la ou, o que é pior, a transformá-la; e equivale, por isso, à legitimidade da dissidência e, inclusive, da hostilidade diante do Estado; à tolerância para com o diferente, ao qual se reconhece sua dignidade pessoal; à igualdade dos cidadãos, diferenciáveis apenas por seus atos, não por suas ideias, por suas opiniões ou por sua específica diversidade pessoal.”
[50] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 387.
[51] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 389: “Em ambos os casos, as vias do substancialismo coincidem, como sempre, com as do subjetivismo: por um lado, deliquente nato e tipo criminológico; por outro, personalidade inimiga ou desleal e tipo normativo do autor. A crise da ação como garantia marca uma desvalorização da pessoa humana, degradada à categoria animal, em um caso, e sublimada e negada, no outro, por meio de sua identificação com o Estado. Trata-se da restauração de um substancialismo laico, que substitui o substancialismo jusnaturalista pré-moderno, mas que volta a descobrir o malum in se na pessoa desviada: e isso não como oferenda à velha moral religiosa e ultraterrena, senão às leis da evolução e seleção do organismo social ou, pior ainda, à ética ou à mística do Estado.”.
[52] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 392: “Sem adentrarmos na discussão das inumeráveis opiniões e construções sobre a matéria, parece-me que esta noção – que corresponde à alemã de Schuld e à anglo-saxã de mens rea – pode ser decomposta em três elementos, que constituem outras tantas condições subjetivas de responsabilidade no modelo penal garantista: a) a personalidade (ou ‘suitá’ da ação), que designa a susceptibilidade de adstrição material do delito à pessoa do seu autor, isto é, a relação de causalidade que vincula reciprocamente decisão do réu, ação e resultado do delito; b) a imputabilidade ou capacidade penal, que designa uma condição psicofísica do réu, consistente em sua capacidade, em abstrato, de entender e de querer; c) a intencionalidade ou culpabilidade em sentido estrito, que designa a consciência e a vontade do delito concreto e que, por sua vez, pode assumir a forma de dolo ou de culpa, segundo a intenção esteja referida à ação e ao resultado ou somente à ação e não ao resultado, não querido nem previsto, embora previsível.”
[53] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 395.
[54] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 397: “A força sedutora dessa duas orientações provém do fato de que seus efeitos antigarantistas – ademais de ser reflexo, como todos os esquemas substancialistas, do obscuro lugar-comum do delinqüente como ‘diferente’ (‘doente’ ou ‘inimigo’), ao qual se tem de enfrentar enquanto tal – parecem estritamente coerentes com as duas hipóteses filosóficas que lhes dão impulso e que se beneficiam, por sua vez, do aparentemente óbvio: o determinismo e a não liberdade de querer que fazem com que sintamos injusta a culpabilização subjetiva do agente por ações independentes de sua vontade e que sugerem seu tratamento como se fosse um doente ou um animal perigoso; o livre-arbítrio não condicionado, que torna paralelamente injusto limitar o objeto da pena às manifestações contingentes e casuais do autor, em lugar de estendê-lo à sua personalidade perversa, investigando-a e castigando-a por sua forma geral de ser.”
[55] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 399-400: O livre-arbítrio (...), como pressuposto normativo da culpabilidade, corresponde, em definitivo, ao atuar – ou, caso se prefira, ao querer –, mas não ao ser do agente. Isso não impede, obviamente, que se use a palavra ‘culpável’ para referir-se a uma pessoa, ainda que se não o faça para designar uma ‘propriedade’ (Tício é, em si, culpável), senão somente sua relação com uma conduta (Tício é culpável de uma ação).